A polémica estalou no passado dia 10 de março, quando a Real Academia de História de Espanha (RAH) divulgou um relatório em que atesta que a primeira viagem de circum-navegação da Terra foi um projeto total e exclusivamente espanhol.
Os chefes da diplomacia de Portugal e de Espanha anunciaram em Madrid a 23 de Janeiro a apresentação conjunta de uma candidatura a património da humanidade da primeira viagem de circum-navegação do globo, depois de “dissipadas todas as dúvidas”: “Decidimos que Portugal e Espanha, através dos seus embaixadores na UNESCO, irão apresentar conjuntamente a candidatura” da rota da viagem iniciada pelo português Fernão de Magalhães e terminada pelo espanhol Sebastião Elcano, disse na altura o chefe da diplomacia portuguesa, Augusto Santos Silva.
O relatório da RAH foi elaborado a pedido do diário espanhol ABC que antes desse anúncio tinha avançado que, numa candidatura inicial da rota de Magalhães apresentada por Portugal à UNESCO, o governo português teria apagado o império espanhol da história ao quase não fazer referência ao nome de Sebastião Elcano ou o papel predominante de Espanha na realização da viagem.
Portugal e Espanha estão a organizar inúmeras iniciativas que terão lugar até 2021 para assinalar esta viagem histórica iniciada há 500 anos quando partiu a armada que viria a dar a primeira volta ao mundo, embora não fosse esse o objectivo inicialmente. Primeiro capitaneada por um português, foi concluída por um basco e narrada por um italiano, levantando polémica nas páginas dos jornais.
Magalhães propunha-se atingir as Molucas, as chamadas “ilhas das especiarias”, hoje pertencentes à Indonésia, viajando para ocidente, numa rota alternativa à então usada pelos portugueses que navegavam para oriente ao longo da costa africana, contornando o Cabo da Boa Esperança.
Depois de D. Manuel I se ter recusado a apoiar o projeto, Magalhães foi propô-lo a Carlos I de Espanha. Chegou a Sevilha em 1517 e no ano seguinte apresenta-se ao rei para dizer que seria possível chegar ao arquipélago das Molucas rumando a ocidente e que estariam na área de influência que o Tratado de Tordesilhas atribuía à coroa castelhana. Mas a viagem não correu bem para Magalhães, morto nas Filipinas em Abril de 1521. Seria completada por um único navio, comandado por Sebastian de Elcano, que regressou a Sevilha em 6 de Setembro de 1522, acompanhado de apenas 18 homens dos 234 que dali tinham partido três anos antes. Seja como for, tanto Elcano como Magalhães estão profundamente ligados a esta viagem transoceânica que mudou o mundo, como defende a esmagadora maioria dos historiadores. É o que estes comprovam, após uma recolha de depoimentos feita pela jornalista Lucinda Canelas[1]:
Segundo Francisco Contente Domingues, os dois navegadores deram a volta ao mundo apenas por força das circunstâncias. Nenhum deles tencionava ser o autor deste feito marítimo porque simplesmente nenhum deles tencionava circum-navegar o globo quando saíram de Espanha: as instruções que tinham diziam aliás o contrário: a ideia era ir às Molucas e regressar pelo mesmo caminho. Elcano completa a viagem porque Magalhães foi morto e porque não estão disponíveis outros capitães e pilotos. E fá-lo pela Rota do Cabo, mesmo correndo o risco de encontrar os navios dos portugueses. Ainda de acordo com este historiador, a primeira viagem de circum-navegação foi, por isso, circunstancial: “A polémica a que agora assistimos na imprensa espanhola é artificial e só afecta quem não tem a capacidade de ver as coisas friamente, com o necessário distanciamento de patriotismos primários. Não há duas histórias, há só uma, e nós não temos de escolher entre uma versão espanhola e outra portuguesa”, concluiu.
Para o historiador João Paulo Oliveira e Costa, a fama e o prestígio resultantes desta expedição distinguiram mais a memória de Magalhães do que a de Elcano mas os méritos de cada um deles são diferentes e tanto um como outro devem ser evocados hoje como duas partes complementares de uma única viagem, ainda que o protagonismo de Elcano seja uma consequência dos feitos extraordinários de Magalhães.
Para o espanhol Juan Marchena, esta viagem estabeleceu, de qualquer forma, uma nova fronteira na história da humanidade. A expansão europeia dirigida ao Atlântico de finais do século XV e inícios do XVI conseguiu globalizar o mundo, ligando-o em todos os sentidos e unificando-o. Segundo ele, “este processo foi impulsionado pelas monarquias castelhana e portuguesa, empenhadas numa expansão comercial e política para ocidente, contando com grandes avanços na tecnologia náutica, na cartografia e na astronomia (…) a partir de centros comerciais de primeira ordem, como Lisboa e Sevilha, motores desta expansão”.
Finalmente, também de acordo com a opinião do historiador espanhol Juan Gil, “se temos de festejar hoje a descoberta do Estreito e a travessia do Pacífico, celebremos Magalhães; se temos de festejar a primeira circum-navegação, elogiemos Elcano (…) neste aniversário devíamos louvar não apenas os sobreviventes, mas todos os homens que, de uma maneira ou de outra, participaram naquela grande proeza (entre eles 31 portugueses, 26 italianos, 19 franceses e nove gregos). Seria também uma maneira bonita de ir construindo, com este reconhecimento global, a Europa unida que todos desejamos”.
Concluindo, e conforme escreveu Luiz Fagundes Duarte, um dos meus professores universitários e autor da mais recente edição crítica da Mensagem de Fernando Pessoa: «Um terço (1/3) da «Mensagem» (1934) de Fernando Pessoa é constituído por poemas publicados anteriormente em outros locais e contextos. Aí se inclui a secção «Mar Português», que fora publicada autonomamente na revista «Contemporânea» em Outubro de 1922, onde se inclui o poema OS COLOMBOS:
Outros haverão de ter
O que houvermos de perder.
Outros poderão achar
O que, no nosso encontrar,
Foi achado, ou não achado,
Segundo o destino dado.
Mas o que a elles não toca
É a Magia que evoca
O Longe e faz d’elle historia.
E porisso a sua gloria
É justa aureola dada
Por uma luz emprestada»[2].
Nele, refere Luiz F. Duarte, “fica bem clara a ideia de que aos Portugueses competiu criar o conhecimento científico e ganhar a coragem de avançar — e aos Espanhóis a arte de deles se aproveitarem (…) Fica-nos, ironicamente, a magia da sobrevivência”.
[1] “Circum-navegação: a Magalhães o que é de Magalhães, a Elcano o que é de Elcano. E sem nacionalismos” (recolha de depoimentos de Lucinda Canelas), Jornal Público de 3 de março de 2019.
[2] Fernando Pessoa, «Mensagem e Poemas Publicados em Vida». Edição Crítica de Luiz Fagundes Duarte. Lisboa: Imprensa Nacional, 2018 [2019].



