Lembro quando eu tinha uns onze anos, lá por 1974 e ainda vivendo Franco, o ditador que morreu fisicamente ao ano seguinte mas que ainda não morreu ideologicamente na Espanha, que na minha cidade natal, Ourense, houve um grandíssimo protesto contra a vontade de instalar uma fábrica de celulose.
Várias entidades e diferentes associações contrárias às políticas do regime franquista organizaram uma série de mobilizações que visavam opor-se à instalação de aquela pestilente fábrica que prometia contaminar os nossos campos, as nossas vilas, aldeias e mesmo a própria cidade com os seus rios: o Lonha, o Barbanha e o Minho.
O Ateneu de Ourense e grupos políticos diferentes, todos eles de vocação democrática, contrários ao franquismo e pró-republicanos, chegaram a encher a cidade de gente protestando e perdendo-lhe o medo ao monstro da ditadura.
Surpreendentemente, mas também felizmente, a celulose não se instalou em Ourense. As autoridades do regime decidiram “castigar” os ourensanos levando a fedorenta fábrica longe dali, mas a nossa grandíssima pena foi que a transladaram para outra cidade galega localizada a uns cem quilómetros de distância, Ponte Vedra, onde ainda hoje causa estragos, cancros de pulmões, problemas no aparelho respiratório a um numero muito importante de pontevedreses e uma alta contaminação na ria que é homónima a cidade em questão e capital da província também do mesmo nome. Aquela instalação indesejada foi o sinal de partida para a massiva plantação de eucaliptos que hoje inçam a maior parte das paisagens da costa atlântica e cantábrica da Galiza e que se vai abrindo passagem caminho das velhas florestas verdes e férteis do interior galego nas províncias de Lugo e Ourense, mas também de grande parte de Portugal.
Foi também o sinal de partida para o começo dos gravíssimos eventos celebrados pelo lume nas nossas terras e que foi crescendo em número de incêndios, em gravidade, em intensidade e também em descaro por parte dos responsáveis quem não se importam com os danos de todo tipo, mesmo custo em vidas, que ocasiona tamanha praga provocada, não pelo que nos dizem, mas pelo que não nos dizem.
Lembro sem fazer muitos esforços os verãos de 1985 ou especialmente dos anos 1987, 1988 e 1989 ou os terríveis anos 90.


Esses anos foram duma violência incendiária terrível e de um grande desconcerto na população que não recebia as devidas explicações por parte da sua classe política dirigente da que se supunha estava informada das causas, autoria e origens de semelhante calamidade. Os galegos confiantes na democracia recém estreada e com uma Constituição que garantia o direito à informação, não calculava que os incêndios poderiam ser cousa planificada mas fruto do desequilíbrio de pessoas pontuais ou de praticas incorretas que estavam longe de qualquer intencionalidade perversa.
Na altura dos anos 80 e 90, as pessoas, jovens na altura, que tínhamos qualquer inquietação pela Nossa Terra queríamos saber sobre o assunto e mesmo chegamos a querer informar-nos em palestras e debates públicos organizados por pessoas que para o nosso entender eram comprometidos com a causa saudável da ecologia, e muitos deles ainda hoje continuam merecendo a nossa confiança. Os dados, eram aterradores. Os meses do verão eram indesejados só pelo incomodo do fogo nas proximidades. Agosto especialmente. Aguardávamos o Outono com intenso desejo para termos connosco a água refrescante e o fresco revitalizador, pois algum ano, lembramos Ourense arder pelos quatro pontos cardinais.
O monte do Seminário, o Montalegre, os montes de Cabeça de Vaca e os montes de Covadonga ardiam uma ano sim e outro também. A cidade ardia pelos quatro cantos rodeada de fogos incendiários que faziam que nem o Sol pudesse chegar diáfano a nós. Uma obscura nuvem de fumo tornava irrespirável a atmosfera de Ourense causando um efeito estufa que provocava uma subida da temperatura da cidade, já por si própria a mais cálida da Galiza, a uns 45 graus Celsius, impensáveis antes dos anos que vivíamos. Dentro da nossa própria morada e às obscuras, com as janelas fechadas contornávamos o fume e o calor sendo esta uma das formas possíveis de nos protegermos de semelhante flagelo.
Inseridos dentro da política do Reino da Espanha, aqueles anos 80 e 90 eram anos de intensa atividade terrorista causada por violência real mas muito longe da própria Galiza, nomeadamente no País Basco, onde desde havia muitos anos a resistência ao franquismo se tinha feito desde as armas. Afeitos a essa prática perversa e bêbedos de violência, os implacáveis extremistas não deixavam os maus hábitos. Mas aquele terrorismo saia na TV. Os seus protagonistas apareciam com o rosto descoberto quando eram presos pela forças da ordem. Sendo assim, nunca os galegos pensaram maliciosamente no que diz respeito dos incêndios como uma atividade terrorista. As duas desgraças não eram iguais.
Evidentemente a vida evoluía e as consciências mais lúcidas percebiam que algo não ia bem. Alguma gente notava como aquelas ações incendiárias cediam, cresciam ou mesmo desapareciam em função dos aconteceres da vida política mas os incêndios continuavam verão após verão sem recuo até que nos começos do S. XXI a mudança climática e as circunstâncias ambientais favoreceram que o lume começa-se a ocupar alguns dos meses da primavera e do começo do Outono. Maio, Junho, Outubro… eram já meses onde os incêndios faziam a sua aparição e após anos de protestos e de tentativas de consciencialização começamos a acreditar na ideia de que este problema era um problema planificado, pensado e desejado por alguém em algum obscuro lugar sob uns não menos obscuros interesses.
A circunstância vivida por quem isto escreve no mês de Outubro de 2011 foi esclarecedora: Uma viagem desde Santiago de Compostela até Calvos de Randim, na raia com Portugal e as narrações de outras pessoas conhecidas que também viajaram esses dias entre Monforte de Lemos e Vigo e nas que o fumo dos incêndios não nos abandonaram mesmo durante muitos quilómetros foi uma experiência própria dum filme de Ciência Fição. Real, e para quem não o tenha vivido, inacreditável.
Já não vou entrar no facto de os incêndios destes últimos invernos serem algo novo. Não sao. A falta de chuva e as circunstâncias climáticas e atmosféricas para que o monstro aja com nocturnidade e aleivosia estão já no dia-a-dia, e onde os jornalistas dos informativos só nomeiam que houve um grande número de incêndios quando a gente do comum se dá conta do desastre e começa a denunciar nas Redes Sociais, pois nem nos informativos, nem nos jornais parece que há muita vontade de considerá-los uma notícia importante.
Consequentemente com todas estas cousas veio a reflexão:


Como pode ser que um Estado treinado em mil batalhas contra o execrável terrorismo armado causante de muitas mortes e conhecedor mesmo das vidas íntimas dos causantes de tanta dor, não seja capaz de conhecer, causas, pessoas, objetivos, finalidades, lideres, circulação do dinheiro do financiamento, etc da maldição incendiária na Galiza? Como é possível que os responsáveis da proteção e segurança pública, as instituições do Estado cuja função é livrar-nos da delinquência de todo tipo, os organismos policiais formados por gente preparada para toda contingência, espertos e eficazes, não fossem nunca capazes de descobrir, reconhecer, desarticular e pôr sob ordenamento judiciário a qualquer responsável último dos incêndios na Galiza?
Não me importa saber quem é o paisano que está a passar dificuldades económicas e por duzentos euros é capaz de plantar-lhe lume a um monte… importa-me conhecer e pôr sob a justiça os autênticos responsáveis e autores intelectuais à vez que erradicar e impedir que o desastre ecológico continue. Ainda nunca vi políticos no exercício do poder, chamando à mobilização para que os cidadãos com as mãos pintadas de branco, ou de preto, saiamos berrando às ruas pedindo pela busca e captura dos responsáveis pelos incêndios. A terrorismo das pistolas parece que já está morto, mas a banda terrorista que origina os incêndios, não.
Que se pode aguardar dum Estado que luta muito por umas causas justas mas não se importa ou pouco se implica com outras também justas? Talvez é porque não pode lutar contra uns assuntos, que pelo que nos diz a dedução, ou pelo tratamento dado e pelo interesse manifestado em relação à sua solução, alguns poderiam considerar que são assuntos inconfessáveis? Quem tem a vontade de fazer passar esses assuntos e interesses inconfessáveis como, próprios, obscuros e espúrios? Medo me dá chegar a uma conclusão.


