Em Portugal, cerca de 22% da população sofre de uma perturbação mental, uma das taxas mais elevadas da União Europeia (OECD & European Observatory on Health Systems and Policies, 2023). Este dado coloca o país entre os que mais enfrentam o peso do sofrimento psíquico no espaço europeu. Apesar desta prevalência e de uma crescente consciencialização social, quem vive com uma doença mental continua a carregar um fardo invisível: o estigma. Genericamente, o estigma pode ser definido como um conjunto de atitudes negativas, preconceitos e discriminações dirigidos a alguém devido a uma característica socialmente desvalorizada (Goffman, 1990; Xavier et al., 2013). No campo da saúde mental, traduz-se num sofrimento psicológico acrescido, perda de oportunidades sociais e pior acesso aos cuidados gerais de saúde (Xavier et al., 2013). As consequências acumulam-se: o estigma acentua o isolamento, agrava os sintomas e compromete a funcionalidade e a qualidade de vida.
Em última análise, a doença mental e o estigma alimentam-se mutuamente num ciclo vicioso; quanto maior o preconceito, maior o silêncio, e quanto maior o silêncio, mais fundo se enraíza o estigma. Ainda hoje, o preconceito esconde-se em expressões quotidianas. Muitos continuam a associar a depressão à falta de força de vontade, a ansiedade ao dramatismo e a esquizofrenia à perigosidade. Frases como “anima-te”, “isso passa” ou “ele é maluco” ecoam em casa, nas escolas e nos locais de trabalho, normalizando o desprezo e a incompreensão. Estas microagressões simbólicas, embora subtis, consolidam o muro invisível entre o “normal” e o “doente”.
De acordo com a literatura (Subu et al., 2021; Tushe, 2025; Xavier et al., 2013), o estigma em saúde mental apresenta três faces interligadas: o auto-estigma, que corrói a identidade pessoal; o estigma social, que reflete o preconceito coletivo; e o estigma institucional e profissional, que se manifesta dentro dos próprios serviços de saúde. Cada uma reforça as restantes, formando um sistema de exclusão que atinge o indivíduo, a sociedade e as instituições. O estigma é, portanto, um dos maiores obstáculos à recuperação em saúde mental, enraizado na identidade pessoal, na cultura e no próprio sistema de cuidados. Reconhecê-lo é o primeiro passo para transformá-lo.
Auto-estigma: o inimigo interno
O auto-estigma representa talvez a forma mais silenciosa e destrutiva de discriminação em saúde mental. Quando o preconceito é internalizado, a pessoa passa a acreditar que é “fraca”, “anormal” ou “culpada” pela sua condição. Estudos recentes identificam o auto-estigma como o principal mediador entre o estigma social e a qualidade de vida (Tushe, 2025). Este fardo emocional reduz a procura de ajuda, fragiliza a adesão terapêutica e limita a participação em atividades com significado. Com o tempo, instala-se um sentimento de desesperança, alimentando o ciclo entre deterioração psicológica e isolamento (Tushe, 2025; Xavier et al., 2013).
Apesar da sua gravidade, o auto-estigma é reversível. A psicoeducação, a empatia e as intervenções de capacitação pessoal demonstraram restaurar a auto-estima e reconfigurar a narrativa interna do doente (Tushe, 2025; Xavier et al., 2013). O contacto com pares que ultrapassaram desafios semelhantes (peer support) mostrou reduzir significativamente esta vergonha internalizada e aumentar a autoconfiança (Hankir et al., 2014).
Estigma social: o inimigo público
O estigma social é um espelho colectivo das crenças culturais e históricas sobre a saúde mental. É neste domínio que persistem mitos e distorções: “os esquizofrénicos são perigosos”, “os depressivos são preguiçosos”, “a doença mental é para quem é fraco de cabeça”. Embora amplamente refutados pela evidência científica (Rössler, 2016), estes estereótipos continuam a moldar a opinião social e o comportamento coletivo. Uma das formas mais subtis (mas poderosas) de perpetuar o estigma é a linguagem. Designar alguém como “bipolar” ou “esquizofrénico” é reduzir a pessoa à sua doença, apagando todas as outras dimensões da sua identidade. A linguagem centrada na pessoa (“pessoa com esquizofrenia” ou “pessoa com doença bipolar”) é mais do que uma questão semântica; é um ato de respeito e humanização, que recusa o rótulo e devolve dignidade ao sujeito.
Lamichhane (2023) demonstrou uma correlação inversa entre a literacia em saúde mental e o estigma: quanto maior o conhecimento, menor o preconceito e maior a procura de ajuda. A literacia em saúde mental é, assim, um pilar fundamental para a prevenção e mudança cultural. Contudo, a ignorância é alimentada por representações mediáticas sensacionalistas, que enfatizam o perigo e a violência. Investir em literacia não é apenas uma questão educativa, mas uma estratégia de saúde pública essencial para reduzir exclusão e desigualdade. Combater o estigma social é humanizar o discurso público sobre o sofrimento psíquico e devolver à doença mental o seu verdadeiro rosto: humano, comum e tratável.
Estigma profissional: o inimigo dos cuidados
Paradoxalmente, o estigma também habita dentro das instituições e dos próprios profissionais de saúde. O estigma profissional manifesta-se tanto nas atitudes individuais como na estrutura dos sistemas de cuidados.
Em primeiro lugar, observa-se o preconceito de profissionais em relação às pessoas com doença mental, frequentemente vistas como imprevisíveis ou “difíceis” (Knaak et al., 2017). Um inquérito da Canadian Psychiatric Association revelou que 79% dos médicos testemunharam discriminação de colegas contra doentes com perturbações mentais (Abbey et al., 2011). Em segundo lugar, persiste o estigma entre especialidades, onde psiquiatras e enfermeiros de saúde mental são, por vezes, percepcionados como “menos médicos” ou “menos científicos” (Knaak et al., 2017; Subu et al., 2021). Esta desvalorização simbólica alimenta o isolamento da psiquiatria e dificulta o recrutamento de novos profissionais. Por fim, Kamalzadeh et al., 2023, demonstraram que o estigma institucional é também arquitetónico e simbólico: muitos hospitais psiquiátricos continuam a ser edifícios periféricos, herdeiros de um modelo asilar que traduz, fisicamente, o afastamento social da doença mental.
A evidência mostra que formação contínua, contacto com pessoas com experiência pessoal de doença mental e apoio psicológico aos profissionais reduzem atitudes discriminatórias (Hankir et al., 2014; Knaak et al., 2017). Contudo, nenhuma mudança é sustentável sem investimento público e liderança institucional. Enquanto a saúde mental continuar a ocupar o último lugar nas prioridades orçamentais, qualquer transformação será meramente superficial.
Conclusão
O estigma em saúde mental tem múltiplas faces, mas um mesmo efeito: exclusão. Ele opera no interior da mente, nas relações sociais e nas próprias instituições que deveriam proteger. Combater o estigma não é apenas corrigir percepções, mas reconstruir a forma como compreendemos o sofrimento humano e o lugar da vulnerabilidade. A mudança começa na linguagem, consolida-se na educação e na empatia, e exige liderança ética e compromisso político. A verdadeira medida de um sistema de saúde não está apenas na sua capacidade de tratar, mas na sua vontade de cuidar sem preconceito e com humanidade.
Referências:
Abbey, S., Charbonneau, M., Tranulis, C., Moss, P., Baici, W., Dabby, L., Gautam, M., & Pare, M. (2011). Stigma and Discrimination. Canadian journal of psychiatry. Revue canadienne de psychiatrie, 56, 1–9. https://www.cpa-apc.org/wp-content/uploads/Stigma-2011-51-web-FIN-EN.pdf
Goffman, E. (1990). Stigma: Notes on the management of spoiled identity. Penguin.
Hankir, A. K., Northall, A., & Zaman, R. (2014). Stigma and mental health challenges in medical students. BMJ Case Reports, 2014, bcr2014205226. https://doi.org/10.1136/bcr-2014-205226
Kamalzadeh, L., de Filippis, R., El Hayek, S., Heidari Mokarar, M., Jatchavala, C., Koh, E. B. Y., Larnaout, A., Noor, I. M., Ojeahere, M. I., Orsolini, L., Pinto da Costa, M., Ransing, R., Sattari, M. A., & Shalbafan, M. (2023). Impact of stigma on the placement of mental health facilities: Insights from early career psychiatrists worldwide. Frontiers in Psychiatry, 14, 1307277. https://doi.org/10.3389/fpsyt.2023.1307277
Knaak, S., Mantler, E., & Szeto, A. (2017). Mental illness-related stigma in healthcare. Healthcare Management Forum, 30(2), 111–116. https://doi.org/10.1177/0840470416679413
OECD & European Observatory on Health Systems and Policies. (2023). Portugal: Country Health Profile 2023. OECD. https://doi.org/10.1787/069af7b1-en
Rössler, W. (2016). The stigma of mental disorders. EMBO Reports, 17(9), 1250–1253. https://doi.org/10.15252/embr.201643041
Subu, M. A., Wati, D. F., Netrida, N., Priscilla, V., Dias, J. M., Abraham, M. S., Slewa-Younan, S., & Al-Yateem, N. (2021). Types of stigma experienced by patients with mental illness and mental health nurses in Indonesia: A qualitative content analysis. International Journal of Mental Health Systems, 15(1), 77. https://doi.org/10.1186/s13033-021-00502-x
Tushe, M. (2025). The Impact of Stigma on the Quality of Life in Individuals with Mental Health Disorders (No. 2025022217). Preprints. https://doi.org/10.20944/preprints202502.2217.v1
Xavier, S., Klut, C., & Neto, A. (2013). O Estigma da Doença Mental: Que Caminho Percorremos? 11. http://hdl.handle.net/10400.10/1231