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Porque é que a Rússia quer a Ucrânia? Uma Análise Político-Estratégica

Porque é que a Rússia quer a Ucrânia? Uma Análise Político-Estratégica

A guerra em curso entre a Rússia e a Ucrânia, iniciada formalmente em fevereiro de 2022, representa mais do que uma mera disputa territorial ou um episódio isolado de conflito no espaço pós-soviético. Ela revela, em toda a sua complexidade, um choque profundo entre visões de mundo, modelos de poder e projeções estratégicas que remontam séculos. No centro desta disputa está a Ucrânia, um país que, pela sua localização, recursos e história, tornou-se o epicentro de uma luta entre a Rússia e o Ocidente pela redefinição das esferas de influência e pela configuração da ordem internacional no século XXI.

A Rússia não vê a Ucrânia como apenas mais um país vizinho, mas como um elemento integrante da sua própria identidade nacional, civilizacional e estratégica. Esta perceção foi reforçada pelo próprio presidente Vladimir Putin, que ao longo da última década tem insistido, em discursos e documentos oficiais, que russos e ucranianos formam “um único povo”, vítimas da artificialidade dos mapas pós-soviéticos (Wilson, 2024). Esta narrativa histórico-identitária não é nova. Remonta à mitificada Rus’ de Kiev, considerada pelos nacionalistas russos como o berço da civilização eslava oriental. A ideia de que a separação da Ucrânia foi um “erro histórico” pós-URSS molda a política externa de Moscovo e legitima, aos olhos do Kremlin, a tentativa de restaurar a influência sobre Kiev.

Neste contexto, a Ucrânia simboliza o elo perdido da grande Rússia histórica. A sua ocidentalização, expressa nas aspirações de adesão à União Europeia e à NATO, é interpretada como um corte simbólico e geopolítico com Moscovo. Para Putin e a elite de segurança russa, a independência plena da Ucrânia, sobretudo enquanto aliada do Ocidente, representa uma ameaça direta à sobrevivência do regime russo e à sua conceção imperial de Estado. Por isso, a tentativa de manter a Ucrânia sob influência russa é menos uma opção e mais uma necessidade estratégica percebida (Charap & Radin, 2025).

A geopolítica reforça esta visão. A Ucrânia funciona, desde a Guerra Fria, como um verdadeiro “estado-tampão” entre a Rússia e a Europa Ocidental. A sua neutralidade (ou aliança) tem implicações diretas na segurança da Rússia. A eventual entrada da Ucrânia na NATO seria, do ponto de vista de Moscovo, uma catástrofe estratégica, uma vez que colocaria tropas e mísseis da Aliança Atlântica a poucos quilómetros de território russo. Este cenário comprometeria a “profundidade estratégica” que, historicamente, protegeu a Rússia de invasões externas — Napoleão, Hitler — e justificaria uma postura militarista por parte do Kremlin.

Por outro lado, a Ucrânia tem um papel central na equação energética e económica da região. Não apenas pelas suas reservas minerais — incluindo carvão, ferro, urânio e, mais recentemente, lítio, fundamental para a transição energética global — mas também pelas suas terras agrícolas, consideradas entre as mais férteis do planeta. A Ucrânia é, há décadas, um dos maiores exportadores de trigo e milho, o que lhe confere peso geopolítico em mercados globais, especialmente junto a países dependentes de importações alimentares (Henderson, 2024).

Adicionalmente, a importância da Ucrânia como corredor energético é incontestável. Durante décadas, a rede de gasodutos ucranianos foi o principal canal de exportação do gás russo para a Europa. Embora novos corredores, como o Nord Stream (agora comprometido), tenham surgido, o controlo das rotas energéticas pela Ucrânia continua a ser estratégico para Moscovo. Dominar este fluxo significa possuir uma alavanca de pressão permanente sobre Bruxelas. A guerra de 2022-2025 mostrou como a energia pode ser usada como arma, com a Rússia manipulando os preços e os fornecimentos para fragmentar a posição ocidental.

A dimensão militar da questão não é menos relevante. A anexação da Crimeia, em 2014, não foi um gesto isolado. Deu à Rússia o controlo de Sebastopol, base naval vital para projeção de poder no Mar Negro e, por consequência, no Mediterrâneo oriental. A ofensiva subsequente no sul e leste da Ucrânia visou consolidar uma faixa terrestre contínua até a Crimeia, ampliando o domínio russo sobre o litoral e restringindo o acesso da Ucrânia ao mar (Monaghan, 2024). Tal estratégia revela a busca por ampliar a profundidade defensiva e ofensiva da Rússia frente a uma eventual confrontação futura com o Ocidente.

Politicamente, o conflito oferece ao Kremlin uma narrativa unificadora. Num regime cada vez mais autoritário, a guerra serve como ferramenta de mobilização nacionalista. A retórica de “proteger os russófonos” no Donbass e em outras regiões da Ucrânia orienta a propaganda estatal e reforça a imagem de Putin como defensor dos valores tradicionais e dos interesses históricos russos frente à “degeneração” ocidental. Neste sentido, a Ucrânia é instrumentalizada como palco de um embate civilizacional que transcende as fronteiras físicas (Galeotti, 2025).

Do ponto de vista ocidental, a defesa da soberania ucraniana tornou-se símbolo da resistência à expansão autoritária e da manutenção das regras da ordem internacional baseada em normas. A resposta ocidental, com sanções, apoio militar e diplomático a Kiev, não visa apenas proteger a Ucrânia, mas impedir um precedente perigoso para outros conflitos potenciais em regiões como o Báltico ou o Cáucaso. Assim, a disputa assume contornos globais, onde a Ucrânia é a linha de frente de um novo tipo de Guerra Fria.

No entanto, é importante reconhecer que a Rússia também atua de forma reativa. A expansão da NATO para o leste, embora legal do ponto de vista dos Estados soberanos envolvidos, foi interpretada por Moscovo como uma provocação e uma quebra de promessas informais feitas nos anos 1990. A ausência de um mecanismo eficaz de segurança pan-europeia pós-Guerra Fria criou um vácuo que facilitou a escalada. A tragédia ucraniana também resulta de erros estratégicos acumulados por todas as partes envolvidas.

Em última análise, a Rússia quer a Ucrânia por múltiplas razões interligadas. Historicamente, porque acredita que sem a Ucrânia não pode ser um império. Identitariamente, porque a vê como parte do seu passado civilizacional. Geopoliticamente, porque é um espaço-tampão vital entre a Rússia e a NATO. Energeticamente, porque é um corredor crucial de exportações. Militarmente, porque o controlo do território ucraniano reforça a sua posição regional. E politicamente, porque o conflito permite ao regime russo consolidar poder interno e projetar força externa.

A questão ucraniana, portanto, não pode ser reduzida a uma simples invasão. Trata-se de um campo de batalha onde joga-se o futuro da ordem mundial, a estabilidade da Europa, a soberania dos Estados pós-soviéticos e o próprio destino da Rússia enquanto potência global. A resolução deste conflito exigirá não apenas força militar, mas também visão estratégica, diplomacia criativa e coragem política para reimaginar a segurança europeia de forma inclusiva e sustentável.

Referências Bibliográficas

Charap, S., & Radin, A. (2025). Russia’s war and the limits of NATO deterrence. RAND Corporation.

Galeotti, M. (2025). The Russian challenge: Power, identity, and confrontation. Yale University Press.

Henderson, J. (2024). Energy corridors and Russian leverage in Europe. Energy Policy, 182, 113567. https://doi.org/10.1016/j.enpol.2024.113567

Monaghan, A. (2024). Russian military strategy after Ukraine: Lessons and trajectories. Survival, 66(5), 45–62. https://doi.org/10.1080/00396338.2024.987654

Plokhy, S. (2023). The Russo-Ukrainian War: The return of history. Allen Lane.

Wilson, A. (2024). Ukraine and the making of modern Russia. Journal of Slavic Studies, 83(2), 221–240. https://doi.org/10.1080/00909882.2024.246810

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