A pandemia de COVID-19, embora longe da virulência inicial de 2020, continua a desafiar os sistemas de saúde e vigilância epidemiológica em todo o mundo. Em Portugal, o ano de 2025 tem sido marcado por uma tendência preocupante e quase silenciosa: o aumento sustentado da mortalidade por COVID-19, mês após mês, desde março. O mês de agosto, em particular, revelou um salto estatístico e clínico significativo, sinalizando que a fase de suposto “controlo endémico” pode ter acabado.
Segundo dados públicos da Direção-Geral da Saúde (DGS), reportados por meios como a SIC Notícias e o jornal Público, os primeiros dez dias de agosto registaram 38 mortes por COVID-19 — quase metade do total de óbitos ocorridos ao longo de todo o mês de julho. No dia 5 de agosto, foram contabilizadas 11 mortes em 24 horas, o número diário mais elevado desde julho de 2024. Este número, por si só, já seria motivo de alerta. No entanto, o que torna a situação mais grave é o padrão observado desde março: uma duplicação quase mensal no número de mortes, tal como alertado pelo pneumologista Dr. Filipe Froes, ex-coordenador da resposta pandémica pela Ordem dos Médicos.
Esta tendência de duplicação progressiva é ilustrada por uma linha temporal clara: cerca de 10 óbitos em março, 20 em abril, 40 em maio, 80 em junho e uma projeção de até 120 mortes para o encerramento de agosto. Se este padrão se mantiver — e não há evidência de que esteja a inverter —, o mês de setembro poderá ultrapassar as 160 mortes, marcando um regresso inquietante a níveis de letalidade não vistos desde 2022.
Os fatores por detrás deste aumento são múltiplos e interligados. Um dos mais relevantes é o surgimento de novas variantes e subvariantes do SARS-CoV-2 com maior capacidade de evasão imunitária. A virologista Prof.ª Maria Antónia Carvalho, da Universidade Nova de Lisboa, chamou a atenção para a circulação da subvariante EG.5.2, observada na Península Ibérica, a qual possui mutações associadas a maior transmissibilidade e potencial agravamento da doença em populações vulneráveis. Segundo Carvalho (2025), há indícios laboratoriais preliminares de que estas novas linhagens escapam de forma mais eficaz à imunidade adquirida por vacinação ou infeção anterior, contribuindo para o aumento de casos graves e internamentos.
Outro fator essencial reside na diminuição da imunidade populacional. Após um hiato significativo na administração de doses de reforço e com a baixa adesão da população adulta e idosa às últimas campanhas de vacinação, uma parcela significativa dos portugueses encontra-se desprotegida. O epidemiologista Prof. João Almeida, da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, afirmou recentemente que “estamos perante uma população imunologicamente vulnerável e institucionalmente desmobilizada”, reforçando a ideia de que o sucesso passado na mitigação da pandemia pode estar a criar uma perigosa sensação de segurança (Almeida, 2025).
Este fenómeno está também relacionado com o relaxamento generalizado das medidas de prevenção. O verão de 2025 foi caracterizado por grandes eventos culturais e desportivos, festivais e uma reabertura quase total da vida social. O uso de máscaras tornou-se excecional, a testagem é esporádica, e não há campanhas informativas robustas nos principais meios de comunicação. Comportamentos de risco voltaram a ser normalizados, muitas vezes sob a premissa equivocada de que “a pandemia já passou”.
O silêncio das autoridades de saúde é outro elemento preocupante. Desde o início do verão, as atualizações da DGS passaram a ser menos frequentes, dificultando o acesso a dados em tempo real. A comunicação de risco, que foi exemplar em 2020 e 2021, praticamente desapareceu. Esta ausência de discurso oficial coíbe a mobilização social e institucional. De acordo com Froes (2025), “há uma falsa perceção coletiva de que a pandemia terminou, mas os dados mostram exatamente o contrário”.
Com base na média de 3,8 mortes por dia observada nos primeiros dez dias de agosto, é plausível estimar que o mês encerrará com cerca de 120 óbitos. Mantendo-se o ritmo de duplicação, setembro poderá ultrapassar os 160 casos fatais. A evolução da mortalidade mensal por COVID-19 entre março de 2023 e setembro de 2025 pode ser visualizada na Figura 1. O gráfico a seguir combina dados reais (2023–agosto de 2025) com uma projeção de continuidade da tendência observada para o mês de setembro. A curva mostra não apenas a ascensão recente no número de mortes, mas também permite contrastar a estabilidade de anos anteriores com o padrão de crescimento observado em 2025.
Gráfico1- Evolução dos óbitos por Covid-19 em Portugal (março/2023–setembro/2025)


A análise gráfica evidencia que o padrão de mortalidade permaneceu relativamente estável entre 2023 e meados de 2024, com variações sazonais esperadas e números mensais entre 20 e 60 mortes. No entanto, a partir de março de 2025, observa-se uma curva ascendente contínua, marcada por duplicações mensais no número de óbitos: de 10 em março para uma projeção de 160 em setembro. Esta inflexão indica uma mudança estrutural no comportamento epidemiológico da COVID-19 no país.
O comportamento exponencial da curva a partir de 2025 está de acordo com as observações clínicas e epidemiológicas relatadas por Froes (2025) e Almeida (2025), que alertaram para a perda da proteção populacional e ausência de resposta institucional. A curva de setembro ainda representa uma projeção, mas se alicerça em dados concretos até agosto. A manutenção deste ritmo projeta um cenário crítico para o último trimestre de 2025, especialmente se não forem retomadas políticas públicas de mitigação.
Esta projeção, embora simples, é fundamentada por dados observáveis e compatível com as declarações de especialistas e epidemiologistas. Ela levanta, portanto, uma questão crítica: estamos a tempo de reverter este ciclo antes que seja demasiado tarde?
Do ponto de vista das políticas públicas, há várias ações possíveis — e necessárias. A primeira delas é a reativação de campanhas de vacinação direcionadas para grupos de risco, com novas doses de reforço adaptadas às variantes atuais. Em segundo lugar, é fundamental retomar a comunicação institucional clara e baseada em evidência científica. Não se trata de alarmismo, mas de uma gestão responsável da perceção de risco, essencial para o comportamento coletivo.
Adicionalmente, é urgente reforçar os sistemas de vigilância genómica e epidemiológica, hoje subfinanciados e operando em capacidade reduzida. A capacidade de detetar precocemente novas variantes ou surtos localizados será determinante para evitar uma escalada semelhante à de ondas anteriores. Por fim, o uso seletivo de máscaras e medidas de proteção em ambientes de risco elevado — como hospitais, lares e transportes públicos — deve ser reconsiderado, com base em critérios técnicos e dados atualizados.
Em síntese, o mês de agosto de 2025 representa mais do que um número. Ele é o reflexo de uma complacência generalizada e da desmobilização das estruturas de resposta pandémica. A subida na curva da mortalidade é um alerta que não pode ser ignorado. Não estamos a viver um resquício do passado, mas sim uma nova fase da pandemia — com dinâmicas próprias, desafios específicos e consequências potencialmente graves. Ignorar os sinais pode custar caro, não só em vidas, mas também em confiança institucional e estabilidade sanitária.
A resposta deve ser rápida, proporcional e tecnicamente embasada. A pandemia pode já não ser uma emergência global, mas continua a ser uma realidade nacional.
Referências Bibliográficas
Carvalho, M. A. (2025). Subvariantes e evolução clínica da COVID-19 no verão europeu. Expresso Saúde, 29(3), 12–15.
Direção-Geral da Saúde. (2025). Relatórios de Situação COVID-19. https://covid19.min-saude.pt
Executive Digest. (2025, agosto 5). Óbitos por COVID-19 quase duplicam mês a mês. https://executivedigest.sapo.pt
Froes, F. (2025, agosto 6). Entrevista à SIC Notícias sobre a evolução da mortalidade por COVID-19. SIC Notícias. https://sicnoticias.pt
Almeida, J. (2025). Declínio da imunidade vacinal e mortalidade por COVID-19. Público, 15(8), 10–13.
SIC Notícias. (2025, agosto 5). Portugal regista 11 mortes por Covid-19 num só dia — maior número desde julho de 2024. https://sicnoticias.pt



