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Eleições com Bots: Ainda Votamos ou Já Decidimos com Algoritmos?

Eleições com Bots: Ainda Votamos ou Já Decidimos com Algoritmos?

Se a urna se tornou digital, quem realmente deposita o voto: o cidadão ou a máquina invisível que o influencia? Em 2025, o processo eleitoral já não se resume ao exercício presencial do voto. A maioria das campanhas ocorre em plataformas digitais, onde algoritmos operam como arquitetos da perceção pública. A estrutura das redes sociais, associada ao avanço da inteligência artificial, tem alterado profundamente os mecanismos tradicionais da democracia representativa, deslocando o poder da decisão do eleitor para sistemas algorítmicos invisíveis que condicionam o acesso à informação, moldam emoções e geram influência. Este artigo analisa os efeitos desta mutação, centrando-se no papel dos bots políticos, nos sistemas de microdirecionamento, na desinformação automatizada e nas suas consequências para a integridade democrática.

Ao contrário da propaganda clássica, os algoritmos não apenas promovem mensagens: eles organizam, hierarquizam e moldam o fluxo de informação com base em perfis psicográficos, padrões de comportamento digital e modelos preditivos. Como sublinha Tufekci (2024), as plataformas digitais transformaram-se em arenas invisíveis de persuasão política. Os utilizadores não consomem informação de forma autónoma; esta é-lhes apresentada com base em decisões algorítmicas que visam maximizar retenção, envolvimento emocional e tempo de exposição. Neste contexto, as preferências políticas tornam-se cada vez mais resultado de ambientes informacionais personalizados e não de reflexão cívica livre.

Simultaneamente, regista-se o crescimento exponencial dos chamados bots políticos — programas automatizados que imitam comportamento humano nas redes sociais. Segundo Bradshaw e Howard (2025), mais de 80 países utilizaram bots nas últimas eleições nacionais para promover candidatos, atacar opositores e manipular a opinião pública. Estes bots criam a ilusão de consenso, amplificam mensagens virais e aumentam artificialmente o alcance de certas narrativas. Através da replicação massiva de conteúdos, os bots contribuem para a formação de “realidades políticas paralelas”, onde o eleitorado interage com discursos que não resultam de apoio popular genuíno, mas de estratégias automatizadas.

A emergência daquilo que alguns investigadores designam por “democracia algorítmica” representa um desafio estrutural ao modelo representativo clássico. Conforme analisado no relatório do Oxford Internet Institute (2025), as decisões eleitorais passam a estar condicionadas por sistemas automatizados que identificam fragilidades psicológicas, ideológicas ou emocionais dos eleitores e dirigem-lhes mensagens específicas. Esta lógica rompe com o ideal de igualdade no debate público, substituindo o espaço comum de argumentação por bolhas informacionais individualizadas. O que está em causa já não é apenas a influência, mas a própria capacidade de escolha autónoma.

No plano ético, a situação torna-se ainda mais crítica. Como defende Floridi (2024), a liberdade política exige uma autonomia informada que está diretamente relacionada com a pluralidade e integridade da informação recebida. Se os algoritmos controlam o que vemos, quando vemos e como interpretamos os dados políticos, então a soberania individual do voto está comprometida. A manipulação algorítmica, mesmo que subtil e invisível, equivale a uma forma de condicionamento que põe em causa a legitimidade da decisão eleitoral.

A regulação internacional tenta responder a este fenómeno, embora com eficácia limitada. O AI Act da União Europeia (2024) constitui uma das iniciativas mais ambiciosas neste sentido, ao classificar como de “alto risco” o uso de inteligência artificial em campanhas políticas, impondo regras de transparência e proibição de manipulação oculta. No entanto, a sua aplicação prática enfrenta sérias dificuldades: a natureza transnacional das plataformas digitais, a velocidade de inovação tecnológica e a assimetria de poder entre governos e empresas tecnológicas dificultam a implementação eficaz de mecanismos regulatórios. Como assinala o Carnegie Endowment for International Peace (2025), sem um consenso global, os esforços normativos europeus correm o risco de serem neutralizados por jurisdições permissivas e por estratégias sofisticadas de evasão.

Os casos recentes das eleições nos Estados Unidos, Brasil e Índia exemplificam estes desafios. Em todos eles, registou-se o uso intensivo de microdirecionamento baseado em big data, bots automatizados e campanhas de desinformação orquestradas. No Brasil, durante as eleições de 2022 e 2024, milhares de contas automatizadas espalharam narrativas falsas sobre fraude eleitoral, com impacto mensurável na confiança dos eleitores. Nos Estados Unidos, as campanhas presidenciais de 2024 utilizaram IA generativa para criar vídeos falsos (deepfakes) com declarações fictícias de candidatos, lançando dúvidas sobre a autenticidade do discurso político. Estes episódios demonstram que a manipulação não é apenas técnica — é emocional, identitária e simbólica.

O impacto deste novo ecossistema informacional não se limita à influência sobre o voto. A própria confiança no sistema democrático começa a erodir-se. Quando os cidadãos percebem que foram alvos de manipulação algorítmica, instala-se o cinismo: se tudo é manipulado, votar torna-se irrelevante. Este sentimento de impotência política, reforçado pela opacidade das tecnologias utilizadas, pode conduzir ao abstencionismo, à radicalização ou à rejeição das instituições democráticas. A confiança, uma vez perdida, é difícil de recuperar.

Outro efeito preocupante prende-se com a desigualdade algorítmica. Campanhas com acesso privilegiado a infraestruturas de dados, a serviços de IA avançada e a técnicos especializados adquirem uma vantagem injusta sobre candidatos independentes ou partidos minoritários. A competição política, em vez de basear-se em ideias e propostas, passa a depender do poder computacional e da capacidade de manipulação. Esta assimetria mina o princípio de equidade democrática e transforma as eleições em disputas tecnológicas e não em debates de cidadania.

A questão fundamental que emerge é, pois, a seguinte: se a escolha do eleitor é mediada por sistemas opacos, que decidem o que ele vê, sente e pensa, então ainda estamos perante um voto livre? Ou apenas diante de um simulacro de liberdade, cuidadosamente orquestrado por arquiteturas algorítmicas de influência? O voto continua a existir, mas o processo de decisão que o antecede foi já manipulado. Esta distorção profunda ameaça transformar as democracias em rituais vazios, onde a aparência de escolha esconde a ausência de soberania real.

O caminho possível para resistir a esta transformação passa, inevitavelmente, por uma combinação de regulação robusta, responsabilidade cívica e educação digital. A literacia mediática e algorítmica deve tornar-se uma prioridade das políticas públicas. Os cidadãos precisam compreender como funcionam os algoritmos, que interesses estão por trás da informação que consomem e quais os mecanismos de manipulação invisível a que estão sujeitos. A transparência nas campanhas, a rastreabilidade dos conteúdos patrocinados, a proibição de bots não identificados e a fiscalização supranacional são instrumentos fundamentais para preservar a integridade democrática.

Conclui-se que a intersecção entre algoritmos e política eleitoral configura um dos maiores desafios ético-políticos do nosso tempo. A automatização da influência, longe de representar um simples avanço tecnológico, traduz uma mutação estrutural no próprio conceito de democracia. A menos que se reforce a vigilância normativa e promova-se a autonomia crítica dos cidadãos, arrisca-se a consagrar uma nova forma de poder — invisível, silenciosa e eficaz — onde os algoritmos decidem antes de nós. A pergunta “ainda votamos ou já decidimos com algoritmos?” não é apenas retórica: é o novo teste de stress à vitalidade das democracias liberais.

Referências Bibliográficas

Bradshaw, S., & Howard, P. (2025). The Global Inventory of Social Media Manipulation. Oxford Internet Institute.

Brookings Institution. (2024). Bots, AI, and Electoral Integrity: Policy Challenges in 2024–2025. Washington, DC.

Carnegie Endowment for International Peace. (2025). AI, Bots, and the Future of Elections. Washington, DC.

European Union. (2024). Artificial Intelligence Act. Official Journal of the European Union.

Floridi, L. (2024). The Ethics of Artificial Intelligence in Democratic Societies. AI & Society, 39(1), 11–25.

Oxford Internet Institute. (2025). Democratic Resilience in the Algorithmic Age. Oxford University Press.

Tufekci, Z. (2024). Algorithms and the Public Sphere: Manipulation and Autonomy in Digital Democracies. MIT Press.

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