“Quando a política se torna teatro, o mundo inteiro assiste como espectador de um drama que, no fundo, lhe pertence.” Esta frase resume o que se passou a 15 de agosto de 2025 em Anchorage, Alasca, quando Donald Trump e Vladimir Putin se encontraram frente a frente sob os holofotes do mundo. A escolha não foi inocente. O Alasca, território liminar entre o continente americano e a vastidão russa, tornou-se metáfora de fronteiras e tensões, um palco perfeito para a encenação diplomática de dois líderes que representam projetos políticos antagónicos, mas, em alguns momentos, convergentes. Enquanto aviões militares sobrevoavam o céu, caças F-22 e um bombardeiro B-2 rasgavam o horizonte, bandeiras tremulavam ao vento e jornalistas de todo o mundo aguardavam declarações. No entanto, mais do que uma cimeira de negociações, o encontro foi um espetáculo cuidadosamente produzido. Volodymyr Zelensky, ausente fisicamente, tornou-se paradoxalmente o vértice moral de toda a narrativa, lembrando a cada ausência que a Ucrânia não pode ser ignorada na construção de uma paz duradoura.
A cimeira do Alasca simbolizou a tentativa de reconciliar mundos inconciliáveis. Trump, regressado ao poder nos Estados Unidos, procurou posicionar-se como mediador da paz, mas fê-lo com ambiguidade e populismo, oscilando entre a pressão da NATO e a tentação de alinhar com Moscovo. Putin, fiel à sua postura imperial, apresentou-se como vencedor moral, propondo um cessar-fogo que consolidaria o controlo russo sobre Donetsk e Luhansk, transformando a violência da guerra em factos diplomáticos. Zelensky, em Kiev, acompanhava à distância. Sem cadeira na mesa, foi, contudo, presença constante em discursos, críticas e reações. Como poderia negociar-se o futuro da Ucrânia sem a Ucrânia? A exclusão apenas reforçou a sua imagem de resistente e estadista, mostrando que o silêncio imposto pelos poderosos é, muitas vezes, o maior megafone da dignidade.
Do ponto de vista histórico e científico, este encontro deve ser interpretado não apenas como ato diplomático, mas como performance política. Snyder (2024) argumenta que Putin procura reconfigurar a ordem internacional recriando uma esfera de influência imperial, e a cimeira encaixa nessa lógica: ser recebido em Anchorage, com direito a tapete vermelho e honras de chefe de Estado, foi menos um gesto de negociação e mais uma validação simbólica. Galeotti (2025) acrescenta que a guerra, para Moscovo, não é apenas uma ação militar, mas um instrumento de legitimação interna. Assim, Putin ganhou simplesmente por estar presente, projetando ao mundo que ainda é reconhecido como ator central.
Trump, por outro lado, encarna o paradoxo da águia que voa alto, mas hesita em mergulhar. O seu discurso populista, analisado por Mudde (2024), já tinha mostrado tendência para simplificar problemas complexos em slogans e dicotomias. No Alasca, repetiu esse padrão: falou de paz, mas sem apresentar caminhos concretos; declarou abertura, mas mostrou complacência com as exigências de Putin. Levitsky e Ziblatt (2024) alertam que o trumpismo transcende o próprio Trump, sendo uma estrutura política que mina a coesão atlântica. A cimeira provou isso, pois a ambiguidade de Trump abalou a confiança de aliados europeus, que viram no encontro mais um ato de vaidade do que uma busca genuína de soluções.
E, no entanto, foi Zelensky quem acabou por emergir como centro moral. Krastev (2024) observa que a sua liderança assenta na comunicação performativa, na capacidade de transformar discursos em armas diplomáticas. Mesmo ausente, conseguiu recentrar o debate, denunciando que nenhuma paz pode ser construída à margem da Ucrânia. No próprio dia, anunciou que se reuniria com Trump em Washington, sublinhando a exigência de ser parte integrante de qualquer acordo. Fukuyama (2025) vê nele um novo modelo de liderança em guerra: híbrido entre emoção e pragmatismo, entre resistência e negociação, um estadista improvável que transformou a sua origem de comediante em capital político global.
A diplomacia do Alasca pode, portanto, ser lida como teatro. A conferência de imprensa, sem perguntas e sem resultados, mostrou-se mais espetáculo do que negociação. Fotografias, imagens aéreas e discursos cuidadosamente medidos substituíram compromissos tangíveis. O risco desta diplomacia performativa é duplo: por um lado, dá palco a autocratas que utilizam o simbolismo como vitória; por outro, gera frustração em populações que esperam soluções reais. Como afirma Fukuyama (2025), a política internacional contemporânea é cada vez mais espetáculo, e o Alasca foi o seu mais recente ato.
A crítica torna-se inevitável. A cimeira falhou porque privilegiou a estética em detrimento da substância. Foi vitrine para Putin, hesitação para Trump e injustiça para Zelensky. Enquanto os líderes sorriam para as câmaras em Anchorage, a guerra continuava a devastar cidades ucranianas. Kharkiv, Mariupol e tantas outras continuavam a ser bombardeadas. Este desfasamento entre imagem e realidade é o ponto mais problemático: quando a diplomacia se reduz a encenação, as vítimas tornam-se invisíveis.
Opino, portanto, que o Alasca não representou uma oportunidade de paz, mas uma oportunidade perdida. A exclusão de Zelensky revelou uma visão ainda centrada em velhas lógicas de poder, onde as grandes potências decidem e os pequenos Estados assistem. Mas a Ucrânia não é um peão: é um símbolo da luta entre democracia e autoritarismo. Se a paz for desenhada sem Kiev, será uma paz injusta, incapaz de durar.
Ainda assim, há lições a retirar. Trump demonstrou que o populismo diplomático não resolve conflitos, apenas adia decisões. Putin mostrou que o autoritarismo sabe usar o palco internacional em benefício próprio. Zelensky provou que mesmo ausente é impossível ignorar a sua voz. O triângulo do Alasca revela, em suma, três arquétipos políticos em choque: a águia que hesita, o urso que insiste e o comediante tornado estadista que resiste.
A cimeira de Anchorage não será lembrada pelos acordos que firmou, pois não os houve, mas pela imagem que transmitiu. Representou um retrato de época: um mundo dividido, onde o autoritarismo procura legitimação, o populismo busca protagonismo e a resistência democrática luta pela sobrevivência. Foi uma encenação global sobre paz, guerra e verdade. O problema é que, fora do palco, a guerra continua. E se não formos capazes de ultrapassar a lógica do espetáculo, arriscamo-nos a viver num teatro onde os líderes interpretam papéis e os povos pagam com sangue o preço da encenação.
Assim, o Alasca deve ser lido como advertência. A paz verdadeira exige coragem política, compromisso ético e inclusão das vozes diretamente afetadas. Exige que a diplomacia volte a ser espaço de substância, não apenas de imagem. Se tal não acontecer, cada cimeira será apenas mais um ato de teatro em que o público global aplaude, mas o guião permanece inalterado. O verdadeiro desafio é transformar a encenação em realidade e a promessa em ação. Sem isto, a história continuará a repetir-se, sempre com novos cenários e velhos fantasmas.
Imagem de destaque: https://apnews.com/photo-gallery/trump-putin-alaska-ukraine-war-summit-1620de301b4d6e68d6fb336a9858e62b
Referências Bibliográficas
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European Commission. (2024). EU response to Russia’s war of aggression against Ukraine. Brussels: European Union.
Fukuyama, F. (2025). Democracy under siege: The future of liberal order. Princeton University Press.
Galeotti, M. (2025). Putin’s wars: From Chechnya to Ukraine. Yale University Press.
Krastev, I. (2024). The Zelensky effect: Communication, leadership and war. Journal of Democracy, 35(4), 22–35.
Levitsky, S., & Ziblatt, D. (2024). Tyranny of the minority. Crown Publishing.
Mudde, C. (2024). Populism in power: A global analysis. Oxford University Press.
Snyder, T. (2024). The road to unfreedom revisited. Random House.
The Times. (2025, agosto 15). Trump-Putin meeting: Russia ‘demanded Donetsk and Luhansk’. The Times. https://www.thetimes.co.uk/article/trump-putin-meeting-outcome-alaska-summit-latest-news-vbcdf5cz8
Washington Post. (2025, agosto 16). Key takeaways from Trump-Putin summit and dramatic ceasefire reversal. The Washington Post. https://www.washingtonpost.com/world/2025/08/16/trump-putin-alaska-takeaways-ceasefire



