Fala dos ministros na sessão de abertura contrasta com a de Toffoli em 2018, quando chamou o golpe de 64 de “movimento”
“Vamos pasquinar, recordar
Sorrir sem censura
Botar a boca no mundo, buscar bem fundo
Sem a tal da ditadura
Soltavam as bruxas, o pau comia
De golpe em golpe, quanta covardia!”
(G.R.E.S. Acadêmicos de Santa Cruz — Samba-Enredo 1990 — Os Heróis da Resistência)
O Supremo Tribunal Federal (STF) abriu na sexta-feira, 1º de agosto, seus trabalhos do segundo semestre de 2025 com uma sessão cheia de fortes declarações no Plenário. O presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, e os ministros Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes adotaram um tom de defesa da democracia, da soberania nacional e da independência da Suprema Corte, mas também de combatividade aos golpistas e repúdio aos autoritarismos [1]. Coube a Barroso dar uma boa e breve aula de história em seu discurso, na abertura da sessão. O presidente do STF citou os tantos golpes, intervenções militares, rupturas ou tentativas de ruptura institucional e ditaduras que fragilizam de longuíssima data a democracia do país. Ele se referiu à tomada do poder pelos militares em 1964 como “golpe” e ao período de 1964 a 1985 como “ditadura” e “anos de chumbo”, lembrando feridas como tortura, exílio, censura, mortes e desaparecimentos. Barroso se referiu ao caso de Rubens Paiva, ao citar o premiado filme “Ainda estou aqui” como um retrato daquela época.
Para muitos pode parecer óbvio o uso do termo “ditadura” na denominação daquele período, mas é preciso ressaltar dois pontos. O primeiro é que, lamentavelmente, ainda há muitas pessoas, em sua maioria simpatizantes dos atuais golpistas, que negam ter existido uma ditadura no Brasil (há ainda uma vertente numerosa que não a nega, mas a justifica com argumentos infundados e já desmontados). Um exemplo notório é o governador de Minas Gerais, Romeu Zema. No início do mês de junho, em entrevista para a Folha de S. Paulo, Zema disse que a existência ou não de uma ditadura seria “uma questão de interpretação” [2]. Como Zema é um dos principais políticos atuais a disputar o espólio eleitoral de Jair Bolsonaro, ele precisa abraçar o negacionismo histórico da ditadura como parte do repertório que pode legitimá-lo junto ao bolsonarismo na corrida presidencial. O alinhamento político é elemento crucial da negação da ditadura civil-militar. Outro elemento é o desconhecimento da História.
O segundo ponto pelo qual devemos enaltecer a fala de Barroso é que outro ministro do STF, Dias Toffoli, quando presidente da Corte, disse preferir se referir ao nosso passado ditatorial como um “movimento”, evitando a palavra “golpe” [3]. “Eu não me refiro nem mais a golpe, nem a revolução de 1964. Eu me refiro a movimento de 1964”, afirmou, em palestra na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), em 2018, às vésperas da eleição de Jair Bolsonaro à Presidência do Brasil. Por uma triste ironia, aquele evento marcava os 30 anos da Constituição Federal.
TEORIA DOS DOIS DEMÔNIOS
A fala de Toffoli ressoava uma linha de raciocínio superada na historiografia latino-americana conhecida como “teoria dos dois demônios”. Esse pensamento atribuía às esquerdas e às direitas as mesmas responsabilidades. Então seriam dois demônios que a sociedade deveria exorcizar. Essa ideia traz consigo uma relativização ou mesmo isenção dos culpados pelas ditaduras, além de tentar estabelecer um meio termo. Mas História não é matemática (ainda que exista a história da matemática): não dá para somar dois valores e depois dividir por dois para se chegar a uma média. Ao menos não neste caso.
Quem critica a teoria dos dois demônios é o historiador Daniel Aarão Reis. Para ele, “parece utópico igualar camponeses que lutam pela terra a latifundiários. É impróprio igualar aqueles que lutam por justiça social com os que querem eternizar a injustiça social” [4]. Ao se referir à conjuntura de antes de 1964, Aarão Reis cita como exemplo marinheiros que lutavam pelo direito ao voto e oligarquias que não queriam democratizar o voto. “Havia um movimento muito grande no Brasil antes de 64 por justiça social e democracia, e comparar isso aos que recusavam a democracia me parece um procedimento vesgo.”
Outro historiador, Rodrigo Bonciani, nos propôs a lembrança de um episódio que serve como metáfora para desconstruir a teoria dos dois demônios, ao ressaltar que Toffoli não mencionou, por exemplo, que em 1968, na rua Maria Antônia (São Paulo), houve um conflito entre os alunos da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, contrários à ditadura, e os do Mackenzie, que a defendiam e que disparavam com armas de fogo contra uspianos armados de pedras e paus. Uma bala matou um estudante secundarista que tinha se unido aos uspianos. O episódio inclusive é retratado no filme “A batalha da rua Maria Antônia”, lançado neste ano [5], que tem o mérito de adotar uma linguagem audiovisual ousada, filmado todo em planos-sequência.
Para piorar, Toffoli, além de maquiar a memória da ditadura com o uso da palavra “movimento”, tentou respaldar sua fala afirmando se basear no próprio Daniel Aarão Reis. O historiador tratou de deixar claro que não tinha nada a ver com isso, que essa culpa ele não carregava, e criticou publicamente a fala de Toffoli. “Foi muito infeliz da parte dele dizer que abandona a terminologia ditadura, que expressa perfeitamente o estado de exceção que se passou no país, para assumir um outro conceito”, afirmou Aarão Reis na época, destacando o agravante de isso vir justamente do então presidente do STF.
AMACIAR A EXTREMA DIREITA É COMO ALIMENTAR CROCODILOS
Na ocasião, o historiador classificou o discurso de Toffoli como um “aceno conciliador” para um extremismo autoritário que crescia à direita e tomava o país como uma onda. Aarão Reis apontava essa tentativa de “amaciar” os extremistas como um equívoco. “A extrema direita, historicamente, avança sobre concessões inconsistentes e se fortalece com isto” [6]. Essa afirmação nos faz lembrar de uma das mais importantes personalidades políticas do século 20, que dizia algo parecido. Longe de ser algum tipo de esquerdista, pelo contrário, era um conservador: Winston Churchill.
Primeiro-ministro britânico na ocasião da Segunda Guerra Mundial, Churchill dizia que “um apaziguador é alguém que alimenta um crocodilo esperando ser o último a ser devorado”. Tratava-se de uma crítica a Neville Chamberlain, seu antecessor no cargo. Às vésperas do início da guerra, diante da ascensão do nazismo, Chamberlain apostava na negociação com Hitler, na esperança de que isso pudesse apaziguar a sanha nazista. Ao comentar o que chamava de “ingenuidade das democracias liberais”, a filósofa Agnes Heller, autora da obra “O cotidiano e a história”, citava o caso: “Chamberlain veio para Munique, em 1938, com um pedaço de papel no qual pedia que Hitler renunciasse ao uso da força. Foi entregue e assinado. E Chamberlain vendeu como uma vitória” [7]. Um dos maiores enganos da história. No ano seguinte a guerra se iniciaria.
Na ocasião da fala de Toffoli, em 2018, Aarão Reis já nos alertava para o que chamava de indulgência dos democratas de direita e liberais conservadores em relação ao então crescente fenômeno do bolsonarismo. Naquele ano, diante da fala do então presidente da Corte e da possibilidade de vitória de Bolsonaro, ele já recorria à História para nos dar o alerta:
“Às vésperas de 1964, muitos liberais imaginaram usar ou se servir dos militares para alcançar suas finalidades, afastando líderes populares que os assustavam. Os resultados foram desastrosos para esta gente —todos foram eliminados pelos militares ou tiveram que se conformar com posições secundárias de poder.”
Sobre malogrados acenos conciliadores e apaziguadores feitos por liberais/conservadores à extrema direita, há exemplos concretos muito mais específicos em relação à Justiça e à democracia brasileiras do que o de Neville Chamberlain. O historiador lembrara que na ocasião do golpe de 1964, o presidente do STF de então, Ribeiro da Costa, disfarçou o golpe com um ar de legitimidade, sem nem consultar seus colegas, que também se calaram. Havia uma expectativa de boa relação com os golpistas. Mas o próprio Ribeiro da Costa entraria em repetidos conflitos com a ditadura, quando já era tarde. Churchill diria que ele alimentou um crocodilo.
MUITA ÁGUA ROLOU. E A ÁGUA BATEU NO NARIZ DO STF
De Toffoli, em 2018, a Barroso, na sessão de abertura deste segundo semestre, muita água rolou. Bolsonaro assumiu a presidência e o bolsonarismo se impregnou na máquina pública. Seus líderes e seus adeptos testaram os limites da democracia e das instituições reiteradas vezes. Foram incontáveis faixas e cartazes pedindo fechamento do Congresso e do STF, além de intervenção militar (ou seja, golpe!). Na medida em que, em nome da governabilidade, Bolsonaro fez acordos com o chamado “Centrão”, a artilharia bolsonarista foi se voltando cada vez mais contra o Supremo, em especial contra o ministro Alexandre de Moraes. A distinção e independência entre poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – não são bem-vistas pelos autoritarismos. Eles não gostam muito de Montesquieu. Para fechar o STF bastaria um soldado e um cabo, disse Eduardo Bolsonaro, como quem faz uma sugestão.
Por tudo isso, a fala de abertura de Luís Roberto Barroso na última sessão reflete um STF mais ciente dos riscos e que sentiu o perigo dos ataques que vem sofrendo. É uma fala que dá nome aos bois. Que chama ditadura de ditadura e os golpes de golpes. Focando em nosso período republicano, sobre golpes e tentativas de golpes, o presidente da Corte citou o primeiro presidente da República, Deodoro da Fonseca, que renunciou após tentativa fracassada de golpe, sendo substituído pelo vice, Floriano Peixoto, que se manteve ilegitimamente no cargo até 1894, deixando de convocar eleições.
Citou também tentativas de golpe do movimento Tenentista em 1922 e 1924; a Revolução de 30; a Revolução Constitucionalista de São Paulo de 1932; a Intentona Comunista de 1935; o golpe do Estado Novo de 1937; a destituição de Getúlio Vargas em 1945; o contragolpe preventivo do Marechal Lott para assegurar a posse de Juscelino Kubitschek em 1955; duas rebeliões contra Juscelino: a de Jacareacanga (1956) e a de Aragarças (1959).
E ainda: o veto dos ministros militares à posse do vice-presidente João Goulart na ocasião da renúncia de Jânio Quadros em 1961; o já citado golpe militar de 1964; a prorrogação do mandato de Castelo Branco com a não realização das eleições de 1965; o Ato Institucional nº 5 de 1968; o impedimento à posse do vice-presidente Pedro Aleixo em 1969; a outorga pelos ministros militares da emenda constitucional nº 1 à Constituição de 1967, com o Congresso fechado; os anos de chumbo do governo Médici, período mais cruel e asfixiante da ditadura; e o fechamento do Congresso Nacional por Geisel, no Pacote de Abril de 1977.
“Do início da República até a Constituição de 1988, o sistema de justiça não conseguiu se opor de forma eficaz às ameaças autoritárias e às quebras da legalidade constitucional”, disse Barroso, que resumiu o que chamou de “três facetas da história constitucional e republicana brasileira: presidentes autoritários, militares envolvidos em política e ameaças ao Supremo Tribunal Federal.”
Sobre a longa tradição de participação dos militares na política e nos golpes, vale acrescentar, em primeiro lugar, que esta é a primeira vez que militares serão julgados pela Justiça civil – no STF – pela tentativa de golpe de estado no país, o que faz do julgamento em curso (que envolve o 8 de janeiro) um episódio importante de nossa história; e, em segundo, que está disponível no mercado editorial o mais recente livro do professor e historiador Carlos Fico chamado “Utopia autoritária brasileira”. Na obra, Fico mostra como militares ameaçam a democracia desde 1889 e examina as principais intervenções militares que moldaram a história republicana brasileira [8] [9]. A maioria delas citada por Barroso.
A HISTÓRIA NÃO PERDOA
A História não é uma disciplina utilitarista, mas ainda assim ela tem suas utilidades. Na esfera individual, serve, por exemplo, na formação para a cidadania; na institucional, serve, dentre outras coisas, para que as instituições se posicionem diante de certas ameaças, como no caso do STF frente aos avanços antidemocráticos. Nas duas esferas – individual e institucional – a História nos ajuda a nos conduzir. Assim que Toffoli chamou um golpe de “movimento”, lá em 2018, o historiador e professor Rodrigo Bonciani quase que vaticinou: “a história não perdoa” [10].
“O passado falseado permite a repetição da história como nova tragédia. Quando esse falseamento parte do presidente da mais alta corte do país, numa palestra sobre os 30 anos da Constituição, todo edifício da nossa frágil democracia pode desmoronar”, dizia Bonciani. E não deu outra! Ou quase. Os extremistas, de fato, miraram e ainda miram no STF, mas a Corte, considerando os discursos desta sessão de abertura, parece disposta a agir com firmeza e punir os golpistas, em vez de ficar alimentando crocodilos. A sociedade aguarda atenta.
Referências:
[1] Na abertura do semestre, ministros reafirmam independência do STF e defesa da democracia e da soberania nacional
[2] Fala de Zema questionando ditadura gera reação na Assembleia e pressão por política de memória
[3] Toffoli diz que militares fizeram “movimento”, e não golpe em 1964
[4] Historiador citado por Toffoli rejeita chamar ditadura de ‘movimento’
[5] “O Brasil ainda é a Rua Maria Antônia”. A histórica batalha entre estudantes da USP e do Mackenzie é retratada nos cinemas e tema da última edição do programa Cultura na USP
[6] “Toffoli imagina amaciar a extrema direita com acenos conciliadores”, diz historiador citado por ministro
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/02/politica/1538497133_463693.html
[7] Agnes Heller: “A maldade mata, mas a razão leva a coisas mais terríveis”
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/02/eps/1504379180_260851.html
[8] Em novo livro, historiador mostra como militares ameaçam a democracia desde 1889
https://www.cafehistoria.com.br/novo-livro-militares-carlos-fico/
[9] PROVOCAÇÃO HISTÓRICA — 04/06/25 — ”OS MILITARES DO BRASIL E A UTOPIA AUTORITÁRIA”
[10] O ‘movimento’ de Dias Toffoli: a história não perdoa
https://www.nexojornal.com.br/o-movimento-de-dias-toffoli-a-historia-nao-perdoa



