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ENTRE CRAVOS E MEMÓRIAS: A Revolução de Abril na Imprensa e na Opinião Pública — Um Ensaio Transgeracional e Transnacional

ENTRE CRAVOS E MEMÓRIAS: A Revolução de Abril na Imprensa e na Opinião Pública — Um Ensaio Transgeracional e Transnacional

RESUMO

Cinco décadas após o 25 de Abril de 1974, a Revolução dos Cravos continua a exercer um magnetismo simbólico ímpar na memória coletiva portuguesa e na perceção internacional de Portugal como caso singular de transição pacífica para a democracia. Este artigo analisa criticamente a forma como a Revolução é representada na imprensa e na opinião pública, sob uma lente transgeracional e transnacional. Argumenta-se que, para além do evento histórico, o 25 de Abril é um campo de disputas narrativas — entre memória e esquecimento, entre comemoração e banalização, entre local e global. A análise fundamenta-se numa extensa revisão da literatura, articulando contributos das ciências sociais, dos media studies, da teoria da memória e da história contemporânea.

Palavras-chave: Revolução dos Cravos, imprensa, memória coletiva, opinião pública, gerações, representação mediática, transnacionalidade.

1. INTRODUÇÃO

A Revolução dos Cravos não é apenas um acontecimento histórico; é, como defende Pierre Nora (1989), um lugar de memória, continuamente ressignificado pelos discursos mediáticos, pelas práticas comemorativas e pelas narrativas pedagógicas. A cada aniversário, jornais, televisões e redes sociais reativam imagens emblemáticas – como os cravos nos canos das espingardas – que, embora celebratórias, ocultam a complexidade política, social e cultural do processo revolucionário (Ribeiro, 2022).

O espaço mediático português, particularmente entre os anos 1980 e 2000, desenvolveu um padrão de institucionalização da memória do 25 de Abril, com enfase nos heróis consensuais e apagamento dos conflitos internos da revolução (Sousa & Cardoso, 2021). Por outro lado, o processo de transmissão intergeracional da memória enfrenta hoje desafios consideráveis: as gerações nascidas após a revolução acedem sobretudo a representações filtradas pelos media digitais, o que tende a simplificar, romantizar ou esvaziar o sentido político do evento (Ferreira & Mendes, 2022; Barreto & Lima, 2024).

No plano internacional, a Revolução foi, e continua a ser, observada sob o prisma da excecionalidade democrática. Autores como Huntington (1991) e Tilly (2004) destacam a importância do caso português na terceira vaga de democratizações. No entanto, esta leitura externa nem sempre reconhece as ambiguidades e as continuidades com o regime anterior, visíveis nas estruturas económicas, judiciais e mediáticas (Tavares, 2023).

Neste ensaio, propõe-se uma leitura crítica e multidisciplinar sobre como o 25 de Abril é representado na imprensa e na opinião pública, com especial atenção à forma como diferentes gerações e contextos culturais constroem ou desconstroem o legado revolucionário.

2. A IMPRENSA COMO CURADORA DA MEMÓRIA: ENTRE A CRÓNICA E O ARQUIVO

A imprensa não apenas relata a história — participa ativamente na sua construção. Como argumenta Hall (1997), os media não refletem a realidade, mas produzem significados sociais. No caso do 25 de Abril, a imprensa portuguesa exerceu, nas décadas seguintes, um papel ambivalente:  inicialmente funcionou como extensão da euforia revolucionária, rapidamente adaptou-se às dinâmicas de normalização democrática e ao discurso eurocêntrico da transição “bem-sucedida” (Santos, 2023; Aguiar & Pinto, 2020).

Análises de cobertura mediática mostram que os media portugueses operam dentro de “regimes de memória” (Assmann, 2008), onde determinados marcos são celebrados ciclicamente, enquanto outros são esquecidos ou silenciados. A ausência de debates sobre o papel dos movimentos sociais, das mulheres, e das ex-colónias na narrativa mediática da Revolução é apontada por autores como Almeida (2021) e Borges (2024) como falha na construção de uma memória plural e crítica.

3. MEMÓRIA GERACIONAL: TRANSMISSÃO, RUPTURA E REINTERPRETAÇÃO

A memória do 25 de Abril não é homogénea. Ela é geracional, situada, politizada. Como defendem Mannheim (1928) e Eyerman (2004), cada geração desenvolve uma memória coletiva própria, influenciada pelas suas condições sociais e culturais. A geração que viveu a Revolução tende a valorizar o evento como libertador, enquanto as gerações mais novas frequentemente o associam a feriados, rituais escolares e representações mediáticas (Ferreira & Mendes, 2022).

As escolas, os manuais escolares e os media digitais assumem um papel cada vez mais relevante nesta mediação intergeracional (Barreto & Lima, 2024). No entanto, a ausência de contacto direto com testemunhos vivos, a fragmentação informacional e a despolitização do discurso histórico são obstáculos à construção de uma consciência cívica ancorada em valores democráticos.

4. O 25 DE ABRIL VISTO DE FORA: UMA REVOLUÇÃO GLOBALIZADA?

A internacionalização da memória do 25 de Abril constitui outro eixo essencial. No contexto da Guerra Fria, a transição pacífica portuguesa foi vista como caso raro, atraindo a atenção de académicos e jornalistas (Huntington, 1991; Linz & Stepan, 1996). A imprensa estrangeira exaltou o caráter pacífico da Revolução, o papel dos militares progressistas e a rápida institucionalização democrática (Melo, 2023; Tilly, 2004).

Contudo, a imagem projetada para o exterior nem sempre coincide com a complexidade interna. Em países da América Latina, como o Brasil, o 25 de Abril é visto como símbolo de resistência, mas frequentemente é descontextualizado da sua dimensão europeia e pós-colonial (Rodrigues, 2023). Este hiato entre representação interna e perceção externa levanta questões sobre a “tradução” da memória coletiva em contextos culturais distintos.

5. DISCUSSÃO: ENTRE O PASSADO E O PRESENTE — A DISPUTA CONTÍNUA DA MEMÓRIA DE ABRIL

A análise apresentada ao longo deste artigo permite afirmar que a memória da Revolução dos Cravos é, mais do que um legado histórico, um campo de tensões simbólicas que atravessa gerações, geografias e ideologias. Esta disputa, longe de ser meramente académica, tem implicações profundas na forma como os valores democráticos são interiorizados, ensinados e mobilizados na sociedade contemporânea.

Por um lado, a imprensa tradicional e os media digitais continuam a desempenhar um papel estruturante na mediação da memória coletiva. Como salientam Sousa e Cardoso (2021), os media não apenas reproduzem o passado, mas também moldam o seu significado no presente. Esta função é ainda mais relevante numa era de infoesfera digital (Floridi, 2014), onde a fragmentação da informação e a descontextualização tornam-se ameaças reais à compreensão crítica dos acontecimentos históricos. A cobertura mediática da Revolução, embora recorrente, tende a focar-se em ícones e slogans, frequentemente esvaziando os significados sociopolíticos do processo revolucionário (Ribeiro, 2022).

Por outro lado, a perceção transgeracional da Revolução revela uma crescente dissociação entre memória vivida e memória transmitida (Assmann, 2011). Enquanto a geração de 1974 mantém uma ligação emocional e ideológica com os eventos, as gerações mais jovens acedem a esta memória através de dispositivos escolares, digitais ou midiáticos que nem sempre incentivam o pensamento crítico (Ferreira & Mendes, 2022). Esta constatação reforça os alertas de Nora (1989) sobre a transformação da memória viva em objeto museológico ou ritualizado, muitas vezes desprovido de agência cívica.

A tensão entre memória e esquecimento, conforme discutido por Ricoeur (2000), é visível na omissão sistemática de certos sujeitos históricos da narrativa dominante: mulheres revolucionárias, ex-combatentes das ex-colónias, movimentos estudantis e sindicais. Como argumentam Almeida (2021) e Borges (2024), este silenciamento reproduz desigualdades estruturais no campo da memória, exigindo abordagens interseccionais e descoloniais que permitam resgatar vozes subalternas e experiências marginalizadas.

No plano transnacional, a Revolução de Abril foi amplamente celebrada como exemplo de transição pacífica. Contudo, esta perceção internacional — construída e amplificada pela imprensa estrangeira (Melo, 2023) — tende a cristalizar uma narrativa idealizada, muitas vezes dissociada das contradições internas do processo. Tal como observam Tilly (2004) e Rodrigues (2023), a instrumentalização da memória histórica para fins diplomáticos ou turísticos pode enfraquecer o seu potencial transformador, reduzindo o 25 de Abril a um produto exportável e simbólico, mas politicamente esvaziado.

Face a este cenário, é fundamental reforçar o papel pedagógico da memória democrática, não apenas como evocação do passado, mas como prática ativa de questionamento e participação. Tal como defende Jelin (2002), a memória deve ser entendida como “trabalho social”, em constante negociação e disputa. Esta perspetiva implica compromissos institucionais com a educação histórica, a formação mediática e o incentivo ao pensamento crítico, especialmente em contextos de polarização ideológica e ascensão de discursos autoritários.

Esta discussão permite afirmar que a memória da Revolução dos Cravos está longe de ser um consenso histórico ou uma herança pacífica. Pelo contrário, ela é um espaço político e pedagógico em disputa, que exige vigilância, atualização crítica e abertura a múltiplas vozes. A sua vitalidade dependerá, em última instância, da capacidade da sociedade portuguesa — e da comunidade académica — em manter vivo o debate sobre os sentidos e os silêncios de abril.

6. CONCLUSÃO

A Revolução dos Cravos não pertence apenas ao passado: é um projeto inacabado, cujos significados continuam a ser debatidos, disputados e ressignificados no espaço público. Como argumentam Ricoeur (2000) e Jelin (2002), a memória democrática exige um trabalho constante e consciente: recordar é resistir não só ao esquecimento seletivo, mas também à retórica da banalização.

A diversidade de abordagens aqui analisadas confirma que a memória do 25 de Abril é um campo fértil, dinâmico e em permanente mutação. As gerações mais jovens, bem como os estudos transnacionais, desafiam as leituras canónicas, propondo uma revolução que ultrapassa o plano político — alargando-se às dimensões pedagógica, cultural e identitária. A imprensa mantém-se como mediadora e produtora de sentido, enquanto a opinião pública — cada vez mais fragmentada, digitalizada e polarizada — reinterpreta os símbolos da revolução à luz dos desafios contemporâneos.

Perante este cenário, cabe à imprensa, à escola e aos decisores políticos a responsabilidade de repolitizar o discurso sobre o 25 de Abril, promovendo uma leitura plural, crítica e interseccional dos seus significados. Tal exige abrir espaço às vozes historicamente silenciadas — nomeadamente os ex-colonizados e os movimentos sociais — e incentivar os jovens a interrogar, mais do que repetir, os slogans da democracia.

Só assim se poderá evitar que a memória do 25 de Abril se transforme num ritual estéril e desvinculado do presente. Pelo contrário, deve ser reafirmada como motor ativo de cidadania crítica, consciente das suas raízes e comprometida com os desafios do futuro — em Portugal e no mundo

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

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Linz, J. J., & Stepan, A. (1996). Problems of Democratic Transition and Consolidation. Johns Hopkins University Press.

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