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Lugar arquitetônico, entre pragmatismo e preservação

Lugar arquitetônico, entre pragmatismo e preservação

Imagine a Mágica Terra de Oz, lugar fantástico criado pelo escritor norte-americano Lyman Frank Baum no desfalecer do século XIX. Suponha que a imemorial Estrada de Tijolos Amarelos, por onde seguiram Dorothy e seus amigos rumo à Cidade de Esmeralda, houvesse sucumbido ao tempo e padecesse hoje, pleno século XXI, com rachaduras e infiltrações terríveis que obrigassem à sua reparação. Pense, por fim, se o governo local, pouco afeito a detalhes e alegando falta de recursos, decidisse arrancar os tijolos amarelos, substituindo-os por concreto aparente, de manutenção mais barata. 

Mesmo sem alterar a funcionalidade da estrada, a troca dos tijolos por concreto mudaria fundamentalmente o conto da menina Dorothy e seus amigos fantásticos. É que para ela, o caminho de volta ao lar não passava por uma estrada qualquer de concreto (havia tantas no acinzentado Kansas de onde viera): passava por uma estrada em particular, única no mundo porque revestida com tijolos amarelos! Os tijolos amarelos, na imortal estória de Baum, não se destinam apenas a pavimentar ou ornamentar um caminho. Eles estão ali para lhe conferir identidade, torná-lo um espaço referencial, protagonista. 

Outros tantos “tijolos amarelos” compõem a identidade de inúmeros cartões postais mundo afora: as pedras portuguesas brancas e negras dispostas em formato de ondas no calçadão de Copacabana; as discretas escamas azulejadas no telhado da Ópera de Sidney; os coloridos ladrilhos do Parque Güell, em Barcelona; o mármore tricolor em arranjo geométrico na fachada do Duomo de Florença; as placas de titânio curvado que revestem o museu Guggenheim de Bilbao; os milhares de azulejos em diversos tons de azul que iluminam o interior da Mesquita Azul, em Istambul; as tintas multicores das cúpulas da catedral de São Basílio, em Moscou; o mármore branco que reveste as paredes do Taj Mahal, em Agra, dentre muitos outros. 

Quem escolheu aplicar cada um desses revestimentos – cor, quantidade, lugar e forma – não o fez por casualidade. O uso planejado de elementos arquitetônicos de superfície destina-se não apenas a funções protetivas ou decorativas, mas também à função simbólica. Ao definir esses elementos, o arquiteto propõe-se a grafar determinada mensagem no corpo textual da obra, gerando um efeito simbólico planejado sobre a própria cidade.

O Centro Heydar Aliyev, na capital do Azerbaijão, é um bom exemplo. Obra lapidar da premiada arquiteta iraquiana Zaha Hadid, parece emergir do solo organicamente, transmitindo ao público uma impactante mensagem de acessibilidade. Esse resultado, espécie de releitura da fluidez que tradicionalmente caracteriza a arquitetura islâmica, foi obtido pelo uso da linha curva combinado à eleição da “pele” do edifício. A ambição de criar uma superfície contínua e homogênea exigiu não apenas a associação de diferentes lógicas e técnicas construtivas, mas, igualmente, uma delicada seleção de materiais e cores para o revestimento. A escolha do concreto reforçado com fibra de vidro e poliéster brancos consuma a pretensão artística da arquiteta[1] e cria um lugar, no sentido emprestado à arquitetura pelo teórico norueguês Christian Norberg-Schulz[2].

Schulz[3] entende o lugar como algo mais que uma localização abstrata. Em sua abordagem fenomenológica da arquitetura, defende que a ideia de lugar remete a uma totalidade constituída de coisas concretas que possuem substância material: forma, textura, cor. A união desses elementos determina uma “qualidade ambiental” que constitui a essência do lugar e define sua peculiaridade ou “atmosfera”. 

Caso exemplar no urbanismo internacional, a capital brasileira eleva a aventura do lugar arquitetônico de Schulz a um outro nível, o da própria cidade como totalidade material coerente. Primeiro conjunto urbano do século XX reconhecido pela Unesco como Patrimônio Mundial, Brasília tem sua textualidade arquitetônica inscrita em quatro escalas dialógicas: monumental, residencial, gregária e bucólica, além de sua arquitetura inovadora, por evidente. 

A escala bucólica, onde se dá a transição entre os espaços ocupado e não-ocupado da cidade, registra importantes detalhes do lugar arquitetônico local: gramados, canteiros, bosques e alamedas, que conferem ao conjunto urbano a tecitura particular de uma cidade-jardim. Paralelamente, em uma nota bem mais discreta, mas ainda cumprindo coerente função discursiva, apresentam-se os diversos declives de transição entre eixos e níveis viários, para uso segregado de veículos ou pedestres[4]. Além de forma, função e localização estruturadas, essas transições na parte mais antiga da cidade, a Asa Sul, costumavam compartilhar uma mesma aparência de arcos retos, revestidos por um único padrão de ladrilhos, distintos apenas na cor: brancos, na escala monumental, e terracota, na escala residencial.

Essa coerência, contudo, começou a deixar de existir em novembro de 2019, quando o governo local, sob a escusa de manutenção estrutural das galerias rachadas e infiltradas, aprovou a retirada dos ladrilhos das galerias de transição vertical de veículos da Asa Sul em caráter definitivo, substituindo-os pelo concreto exposto e sua estética vulgar, cujo texto que parece dizer: “não nos importamos com detalhes, belezas ou patrimônios por aqui”. 

Enquanto o Instituto de Arquitetos do Brasil vociferava em Carta Aberta[5] contra esse ataque à memória da cidade, descerimoniosas escavadeiras desentranhavam um a um os ladrilhos históricos, tratando-os como lixo. Como não raro, falou mais alto o pragmatismo tacanho que prima pela avareza imediata de tostões em detrimento dos benefícios de longo prazo decorrentes da sustentável economia da preservação histórica. 

É certo que a vida segue seu fluxo. Não serão umas lajotas a menos em uns muros aqui e acolá que farão frear a locomotiva do dia-a-dia. Salvo grandíssimas tragédias, pouco ou nada impõe trava à vida cotidiana, aparentemente alheia aos detalhes do caminho. Essa é a certeza que move os que trocam memórias por concreto exposto. Essa é a estúpida certeza dos que insistem em ignorar o que se perde pelo caminho. 


[1] Fonte: https://casavogue.globo.com/Arquitetura/Edificios/noticia/2014/01/praca-que-eclode-num-centro-cultural.html, consultada em 16 de março de 2023. 

[2]  MENEZES, Marluci. “Do espaço ao lugar. Do lugar às remodelações sócio-espaciais”. In: Horizontes antropológicos, UFRGS/IFCH, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Ano 6, n. 13(2000). Porto Alegre: PPGAS, 2000.

[3] NORBERG-SCHULZ, Christian. O fenômeno do lugar. In: NESBITT, Kate (Org.). Uma nova agenda para a arquiteturaAntologia teórica, 1965-1995. São Paulo: Cosac & Naify, 2006. 

[4] O Plano Piloto de Brasília foi desenhado pelo urbanista Lúcio Costa à semelhança de um avião. Nele, uma grande transição horizontal permite a circulação de veículos no sentido Norte-Sul, enquanto a cada duas quadras residenciais/comerciais, a transição vertical é feita por galerias menores que recebem o apelido popular de tesourinhas.

[5] Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do Distrito Federal. Carta aberta ao GDF sobre as obras no Eixo Residencial, 2020.  Fonte: http://www.iabdf.org.br/noticias/april-30th-2020, consultado em 22 de março de 2023.

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