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ESTEIROS – Uma obra que inaugurou o neorrealismo português há 80 anos

ESTEIROS – Uma obra que inaugurou o neorrealismo português há 80 anos

«Esteiros. Minúsculos canais, como dedos de mão espalmada, abertos na margem do Tejo. Dedos das mãos avaras dos telhais, que roubam nateiro às águas e vigores à malta. Mãos de lama, que só o rio afoga».

Assim é a frase de entrada no livro de Soeiro Pereira Gomes, e assim fica feito o resumo do mesmo. 

Depois de Gaibéus, de Alves Redol, Esteiros, de Soeiro Pereira Gomes, é considerada uma das primeiras obras romanescas filiadas numa estética neorrealista, numa primeira fase de afirmação deste movimento literário. Denunciando as duras condições de vida das crianças que trabalham nos telhais para sobreviver, Esteiros apresenta-nos um protagonista coletivo, os “filhos dos homens que nunca foram meninos”, como Sagui, Maquineta, Guedelhas, Gaitinhas e Gineto, na sua luta trágica contra a miséria e contra a opressão desumana de uma sociedade submetida à exploração capitalista. O discurso narrativo é estruturado pela passagem das estações, o que remete para a dependência da atividade económica relativamente à Natureza.
Entre os homens, havia crianças em idade de aprender as primeiras letras. Recolhiam o barro dos estreitos canais do rio Tejo, os esteiros, para dele fazerem telhas e tijolos. Trabalhavam a troco de um salário miserável, que os condenava à mendicidade, a uma vida sem saída da pobreza. O autor via tudo da janela da sua casa, em Alhandra, e refletia sobre a injustiça de uma sociedade opressora e exploradora, organizada em favor dos mais fortes. Em vez de calar, prefere denunciar com palavras e outros atos de resistência ao regime de Salazar.
Soeiro Pereira Gomes (1909-1949) conviveu, em Alhandra, com esta mão de obra infantil, a quem, para além de tudo o resto, faltava a esperança. Embora Portugal não tivesse entrado diretamente na guerra, eram dias duros esses que se viviam Portugal, tal como os do pré e pós-guerra.
Com efeito, as crianças e algumas personagens individualizadas descrevem um pequeno percurso de vida, onde a desgraça se multiplica, sem esperança e sem remédio, capítulo após capítulo, culminando com situações de morte, prisão, embriaguez, loucura, fazendo eco de um conflito surdo de classes que se institui de forma hierarquizada.

«O silêncio da tarde convidava a confidências. Contaram-nas. Como velhos amigos, descreveram a história das suas vidas curtas, sem história. Gaitinhas confessou a mágoa de ter renunciado à escola porque a mãe adoecera.
(…) A voz de Gaitinhas era de lágrimas cristalizadas. E Gineto teve pena que ser doutor não fosse coisa que se roubasse.
»

São histórias tristes, de crianças que não o puderam ser na sua plenitude, por serem forçadas a crescer demasiado rápido. E, no entanto, são histórias cheias de esperança, resiliência e sonhos, como apenas as crianças conseguem senti-los.

É notável que Esteiros, o romance de Soeiro Pereira Gomes escrito durante as agruras da Segunda Guerra Mundial tenha chegado, com sucessivas edições, até aos nossos dias: faz este ano seis décadas e ainda não chegou a idade de ser esquecido. A 1.ª edição tem capa e ilustrações de Álvaro Cunhal, o histórico fundador do PCP, o partido comunista português ao qual o escritor aderira em 1937.

A metáfora é, portanto, a da forte ligação entre o homem e a Natureza: o rio é uma grande mão, cujos dedos se ligam aos dedos e mãos de um grupo de rapazinhos pobres, que são desumanamente explorados no fabrico de telhas e tijolos a partir da argila do rio. Se o rio por um lado dá a mão, fornecendo um mísero sustento, por outro lado essa mão aperta como numa tortura. E outras mãos apertam o destino dos operários. A sucessão das estações de um só ano fornece o quadro temporal.
No final, é Verão e, depois de muitas desventuras, ficando uma esperança, ainda que vaga (a censura da época não permitia dizer muito mais), de liberdade:

Gaitinhas-cantor vai com o Sagui correr os caminhos do mundo, à procura do pai. E, quando o encontrar, virá então dar liberdade ao Gineto e mandar para a escola aquela malta dos telhais – moços que parecem homens e nunca foram meninos”.
Os excertos sobre uma cheia afogadora de muitas vidas (que ocorreu mesmo no Tejo em fevereiro de 1941) são impressionantes. Como o são os excertos sobre a necessidade de as crianças roubarem para conseguirem sustento. Vale a pena terminar com um excerto da prosa de Pereira Gomes: “Calaram-se. Barcos, pombas e poente, toda a paixão daquele fim de tarde, entravam pelos olhos dentro do Gaitinhas, extasiado. Gineto, porém, só via os esteiros longos dos telhais, como dedos de mão arrepanhando águas. Os esteiros e as chaminés esguias das fábricas, que o crepúsculo enegrecia ainda mais.”
O neorrealismo, em oposição ao psicologismo e subjetivismo do modernismo português, queria de certo modo recuperar o realismo e o naturalismo dos finais do século XIX, imbuído de um desejo de profunda transformação social. A inspiração literária provinha, entre outros, de Máximo Gorki, que tinha retratado o mundo soviético e, já na língua portuguesa, de Jorge Amado.

Não se tratava tanto de retratar o homem e o mundo, mas mais de intervir para que o homem oprimido se libertasse no mundo. despertando emoções particulares. Depois, ou talvez sobretudo, há a componente política. Por razões mais ideológicas do que estéticas, o romance entrou para o cânone escolar, sendo de leitura obrigatória na escola, depois do 25 de abril, para só sair, talvez ainda por razões ideológicas, passados alguns anos.
Por isso, muita gente, mais ou menos jovem, o leu ou, pelo menos, teve obrigação de o ler. Maravilhosamente escrito, retratando a realidade dos trabalhadores da época – e, quiçá, de muitos ainda nos dias de hoje -, de vidas duras, de homens explorados.
O romancista militante, apanhado pela morte aos 40 anos, deixa uma obra breve mas marcante: dois romances (“Engrenagem” e “Esteiros”), um livro de contos (“Contos Vermelhos”), crónicas e contos avulsos que foram sendo publicados. A produção literária é contudo suficiente para fazer de Soeiro Pereira Gomes (1909-1949) um dos nomes maiores do neorrealismo português.
No âmbito de uma estética romanesca neorrealista, Esteiros privilegia, numa tentativa de representação verosímil da dinâmica social e não perdendo de vista a acessibilidade da escrita, a objetividade, a frase simples e o discurso direto, dando sempre que possível a voz às próprias personagens.

Imagem D.R. Capa da primeira edição. Esta obra foi impedida de circular pela censura. Capa e desenhos de Álvaro Cunhal.

BIBLIOGRAFIA
“Esteiros”, Infopédia, Dicionários Porto Editora.
“Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes, RTP – Ensina, 2010.
Sofia Vargas, “Esteiros, Soeiro Pereira Gomes”, Editorial Avante, 2015.
Carlos Fiolhais, “Esteiros”, De Rerum Natura (blogue), 23 de março de 2011.

(Imagens de capa: edições do livro)

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