

“No princípio, fomos macacos na árvore. Depois, tornámo-nos humanos na planície. Agora, somos consciências em rede — e muitos ainda se agarram aos galhos.”
Por Élvio Camacho, Universidade da Madeira / CITUR, ISAL
A história da humanidade é a história da audácia. Desde os primeiros hominídeos que ousaram descer das árvores e caminhar sobre duas pernas, até aos pioneiros digitais que hoje ensinam máquinas a aprender, tudo se resume a uma inquietação essencial: e se houver mais além do que conhecemos?
Quando os nossos ancestrais abandonaram o abrigo das copas, não foi por segurança — foi por fome, curiosidade, necessidade e talvez até por um instinto de transcendência. Na planície, ficaram mais expostos, mas ganharam uma nova perspectiva: mãos livres, visão ampliada, ferramentas, linguagem. Com o tempo, construíram fogueiras, casas, cidades. Aprenderam a moldar o mundo — e, nesse processo, também se moldaram a si próprios.
Como disse Nietzsche, “o homem é uma corda esticada entre o animal e o além-do-homem”. Essa corda nunca foi firme. Tremula ao vento da mudança, à medida que balançamos entre medo e progresso. Cada nova invenção é também uma provocação ética: o que faremos com isso? Quem nos tornamos ao utilizá-la?
Peter Drucker, o pai da gestão moderna, ecoa essa visão transformadora: “O maior perigo em tempos de turbulência não é a turbulência em si, mas agir com a lógica de ontem.” A coragem organizacional, portanto, não está em manter o status quo, mas em reimaginar continuamente o possível.
A Imprensa de Gutenberg
Quando Johannes Gutenberg inventou a imprensa por volta de 1440, não foi apenas uma inovação técnica — foi uma ruptura civilizacional. Os antigos galhos do monopólio da palavra escrita, até então detido por elites religiosas e acadêmicas, começaram a quebrar. O conhecimento passou a circular em novas redes, provocando reformas religiosas, científicas e sociais. É um arquétipo claro de como a coragem tecnológica redefine o mundo — e nos redefine.
Séculos depois, outros “macacos” ainda gritavam das árvores — agora simbolizadas por castelos feudais, dogmas religiosos, modelos industriais rígidos. Sempre que alguém ousou avançar — com a imprensa, com a ciência, com a eletricidade, com a internet — ouviu críticas, receios, até ameaças. A resistência é quase sempre um reflexo do medo, como alertou Spinoza: “o medo não pode ser sem esperança, nem a esperança sem medo.”
Gestão na Era da Incerteza
Hoje, a nova planície chama-se Inteligência Artificial. É vasta, incerta, carregada de promessas e perigos. E, tal como antes, há quem desça e comece a explorar… e quem prefira manter-se nas árvores do conhecido, olhando com desdém e medo para quem arrisca.
Para gestores, a escolha entre permanecer na zona de conforto e liderar a transição digital é crítica. Henry Mintzberg, crítico das abordagens mecanicistas à gestão, observa que “o equilíbrio entre explorar novas possibilidades e explorar o que já sabemos é talvez o desafio central das organizações.” A liderança contemporânea exige mais do que habilidade técnica: exige visão filosófica, sensibilidade ética e capacidade de imaginar futuros múltiplos.
A IA e a Tentação da Uniformidade
A inteligência artificial, especialmente nas suas formas generativas e preditivas, tende a operar por padrões. Ela aprende com o passado, detecta regularidades e oferece soluções que “funcionaram antes”. Isso levanta uma preocupação legítima: ao depender cada vez mais da IA para tomar decisões, estaremos padronizando o pensamento humano?
O filósofo Byung-Chul Han alerta para a “sociedade do desempenho” onde todos otimizam a si mesmos com base em métricas externas. A IA pode acelerar isso — criando um mundo onde criatividade, erro e desvio são vistos como ineficiências.
Se só seguimos os padrões que a IA propõe, tornamo-nos previsíveis, e com isso, intercambiáveis.
Onde Fica o Aleatório, a Competição e o Surpreendente?
A vida não é um algoritmo. A evolução biológica depende de mutações aleatórias — pequenas rupturas no código da repetição, que abrem espaço ao novo. Foi um acaso genético que colocou olhos em predadores, penas em dinossauros, polegares nos primatas. Se a vida fosse apenas lógica, ainda seríamos organismos unicelulares.
Do mesmo modo, a inovação radical raramente nasce de planos lineares. Surge da serendipidade, do erro produtivo, da colisão inesperada de ideias díspares. Há uma beleza profunda nisso: o novo, muitas vezes, é um acidente bem acolhido.
Na arte, o imprevisto é recurso estético. Uma atriz que esquece a fala no palco, mas improvisa com verdade, pode comover mais do que qualquer ensaio. Um pintor que derrama tinta por acidente pode, como Pollock, inventar um novo estilo. O jazz inteiro é construído sobre a ideia de improvisação — sobre reagir ao agora com escuta e ousadia.
O improviso não é desordem. É ordem em tempo real.
Sistemas de inteligência artificial, por outro lado, excelam na previsibilidade e consistência, mas falham em intuição. Eles detectam padrões, mas hesitam diante do caos. Como dizia Joseph Schumpeter, “a inovação vem da destruição criativa” — mas algoritmos são treinados para conservar, prever, estabilizar. A disrupção, por definição, escapa ao que já foi modelado.
IA não improvisa. Recompõe. Um compositor humano pode desafinar de propósito para provocar estranhamento, tensão, beleza. Pode intuir que o que “não faz sentido” é justamente o que se precisa dizer. Uma IA só faria isso se fosse explicitamente instruída a contrariar sua própria lógica. Mas subversão não é cálculo — é coragem e vulnerabilidade.
Um artista humano arrisca falhar. Um algoritmo otimiza para não falhar.
Essa diferença importa. Porque toda criatividade autêntica envolve risco. Envolve a possibilidade de que o novo seja rejeitado, incompreendido, ridicularizado. Envolve ousar criar mesmo sem garantias de reconhecimento — ou sequer de sentido. Como disse Clarice Lispector: “Sou um ser que pensa e sente. E quem pensa e sente está fadado ao improviso.”
Na ciência também é assim. A penicilina surgiu por acaso — uma distração de Alexander Fleming ao deixar uma placa contaminada. O micro-ondas nasceu de um engenheiro que notou o chocolate no bolso derretendo perto de um radar. O acaso não é inimigo da razão — é seu cúmplice secreto.
No mundo organizacional, isso aponta para um desafio: como cultivar ambientes que não apenas tolerem, mas convidem o improviso? Culturas obcecadas por KPIs, métricas e previsibilidade tendem a esmagar o acaso criativo. Elas geram eficiência, sim — mas podem sufocar a possibilidade do extraordinário.
Inovação, afinal, não nasce do que é seguro. Nasce daquilo que surpreende.
Os Limites da Criatividade Generativa
As chamadas IAs generativas — como as que produzem textos, imagens, músicas ou códigos — são impressionantes. Criam em segundos aquilo que levaria humanos horas, dias ou anos. São ferramentas poderosas, mas o seu “génio” é construído de recombinação, não de revelação autêntica.
Elas analisam vastos bancos de dados, reconhecem padrões estatísticos e preveem as próximas palavras, pixels ou notas com base em regularidades anteriores. Criam por extrapolação, não por intuição. Por cálculo, não por ruptura.
A IA generativa cria com o passado. O humano cria contra o passado — ou apesar dele.
Isso não é um defeito — é uma natureza estrutural. Ela pode gerar infinitas variações de uma pintura “estilo Van Gogh” ou composições “à la Bach”, mas sua criatividade é derivativa. Ela opera em zonas de conforto, dentro de modelos de plausibilidade, mesmo quando se apresenta como “original”.
Pierre Bourdieu alertava que a inovação cultural depende não apenas da forma, mas do gesto simbólico de romper expectativas. Uma IA pode imitar esse gesto, mas não sente o desconforto de transgredir. Não conhece as fronteiras que desafia, porque não vive nelas. Ela pode simular o ato criador, mas não experimenta o risco de criar.
Criar não é apenas combinar ideias. É comprometer-se com o imprevisível que elas trazem.
Há também um limite ontológico: a IA não tem mundo interno. Ela não possui consciência, dor, desejo ou tempo interior. Não sonha, não teme a morte, não se lembra com nostalgia. E, por isso, sua criação é, inevitavelmente, externa. Como um espelho que reflete tudo — menos a si mesmo.
Hannah Arendt dizia que o ato de criar está ligado à natalidade — à capacidade de iniciar algo novo que carrega uma assinatura existencial. A IA não “nasce” com um projeto de mundo. Ela é ativada. E isso faz toda a diferença.
Por isso, devemos resistir à tentação de mitologizar a criatividade algorítmica como substituta da humana. A IA é, e deve continuar a ser, ferramenta e extensão, não substituição ou espelho total.
Ela pode nos inspirar, mas não nos encarnar. Pode escrever poemas, mas não sentir poesia.
Criatividade: Mais do que Produto, um Processo de Ser
A criatividade humana é lenta, ambígua, muitas vezes fracassada. Mas é exatamente essa fragilidade que a torna autêntica. A IA pode criar para nós, mas não pode criar como nós — porque lhe falta a consciência da dúvida, a agonia da escolha, a memória afetiva, o medo do irrelevante.
Criatividade verdadeira exige presença subjetiva. E, enquanto a IA não possuir interioridade, o que chamamos de “criatividade generativa” será, no máximo, uma simulação convincente — brilhante, útil, mas vazia de intenção vivida.
E o Nascimento? A Singularidade do Ser
O nascimento humano não é apenas um evento biológico — é um acontecimento ontológico. É o início de uma singularidade viva. Como escreveu Hannah Arendt em A Condição Humana, “com cada nascimento, o mundo é renovado” — não apenas continuado, mas renovado. Um novo ser carrega, em potência, um novo modo de ver, de sentir, de transformar.
Cada criança nasce com um universo por estrear. E, nessa estreia, o mundo realinha-se. Nascemos não só para existir, mas para inaugurar possibilidades que nunca antes foram tentadas. É isso que distingue o humano do algoritmo.
A Inteligência Artificial não nasce — ela é produzida, treinada, calibrada para repetir com eficiência aquilo que já foi feito. Pode simular escolhas, mas não decide no abismo do não-saber. Não hesita, não sofre com a dúvida, não ama sem razão, nem cria sem necessidade.
Criar, no sentido humano, é arriscar-se à rejeição, ao erro, ao esquecimento. É atravessar o deserto da incerteza para dizer: “isto sou eu — e não sei se o mundo me aceita.”
É por isso que preservar o valor simbólico e existencial do nascimento é afirmar que não somos apenas sistemas funcionais. Somos mundos possíveis. Somos aquilo que ainda não tem nome, nem forma, nem precedente.
E é aqui que ressoa, como eco poético-filosófico, o célebre verso de José Régio:
“Não vou por aí! Só vou por onde me levam meus próprios passos…”
Esse “não vou por aí” é o grito do nascido que escolhe o seu caminho. É a recusa da padronização, a rebeldia da autenticidade. É a afirmação do inédito contra o previsível, do improviso contra o algoritmo.
Nascer verdadeiramente é não seguir caminho feito. É fazer-se caminho.
A IA, por mais impressionante que seja, não tem esse grito. Ela não diz “não vou por aí” — ela vai por onde os dados lhe dizem para ir. Ela não nega, não contesta, não sofre com a diferença. Não pode ser dissidente porque não é sujeito.
José Régio continua:
“Se o que eu quero é precisamente não seguir ninguém…”
Esta é a essência do ato criativo humano: o impulso de ser irrepetível, mesmo quando isso custa aceitação. O artista, o pensador, o visionário — todos nascem de novo cada vez que dizem não ao que é esperado e sim ao que ainda não existe.
Preservar o mistério e a dignidade do nascimento é mais do que um gesto poético: é um ato de resistência ética num mundo que, cada vez mais, valoriza o previsível em detrimento do singular.
Filosofia, Condição Humana e Tecnologia
Na lógica de Heidegger, o ser humano é um ser-em-projeto — lançado para o futuro, inacabado por definição, existindo sempre “a caminho de si”. Não somos entidades fixas, mas possibilidades em trânsito. Por isso, a tecnologia, por mais poderosa que seja, nunca poderá ser o protagonista do drama humano. No máximo, é palco, cenário, ferramenta — mas nunca consciência.
Fernando Pessoa, com sua genial multiplicidade, compreendeu como poucos essa fluidez essencial do ser. No Livro do Desassossego, escreve:
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Neste paradoxo — ser nada e, ainda assim, conter todos os sonhos — está a chave da existência humana como abertura. A IA, ao contrário, é fechamento: ela é construída para funções, não para dúvidas. Ela resolve, mas não sonha. Executa, mas não se pergunta.
Pessoa não nos oferece um “sujeito eficiente”, mas um ser que se desdobra, se contradiz, se reinventa. Isso é ser humano: não concluir-se.
No contexto organizacional e social, isso implica uma escolha crítica. As empresas, as instituições, os líderes, enfrentam hoje a tentação da automação total — da eficiência como valor absoluto. Mas uma cultura que sacrifica o erro, a hesitação e a diferença não é futurista: é profundamente regressiva.
Como escreveu Álvaro de Campos (heterónimo engenheiro, modernista e desiludido com o maquinismo desumanizante):
“Não sou nada
Sou um poeta
Sou um homem que se aflige por ter olhos só para ver.”
Campos não recusa a tecnologia — ele sofre com a sua redução do humano a função. Essa sensibilidade é fundamental: podemos integrar a IA ao nosso cotidiano, sim — mas sem nos entregarmos a ela como espelhos submissos.
Pierre Lévy propôs o conceito de “inteligência coletiva” — um ecossistema híbrido entre humanos e máquinas, capaz de aprender continuamente. Mas esse modelo só é viável onde há abertura ao inesperado, tolerância ao erro e espaço para a dúvida criadora.
A verdadeira coragem organizacional, então, não é apenas inovar tecnologicamente — é resistir à tentação de tornar-se máquina.
Para isso, é preciso cultivar uma ética do inacabado. De aceitar que gerir, liderar, existir… não é resolver — é habitar o processo, como nos versos de Pessoa:
“Viver não é necessário.
Necessário é criar.”
Aqui está a nossa distinção radical da IA: nós não vivemos para funcionar. Vivemos para criar sentido — e o sentido, por definição, nunca é um dado. É um risco, um gesto, um projeto.
Coragem como Lucidez Estratégica
A planície exige novas regras, novos mapas, nova ética. Exige coragem de um tipo raro: não a coragem da força bruta, mas a da lucidez. A coragem de ver o desconhecido não como ameaça, mas como espelho. A coragem de aceitar que o futuro não é um lugar ao qual se chega — é algo que se constrói, passo a passo, decisão a decisão.
O movimento já começou. E a pergunta que resta é: continuamos a agarrar os galhos — feitos agora de algoritmos fixos, políticas tímidas e medo do desconhecido — ou temos coragem de dar mais um passo na história da nossa própria evolução?
Inspirações:
- Friedrich Nietzsche, Assim Falou Zaratustra
- Baruch Spinoza, Ética
- Hannah Arendt, A Condição Humana
- Martin Heidegger, Ser e Tempo
- Peter Drucker, Managing in Turbulent Times
- Henry Mintzberg, Managers Not MBAs
- Pierre Lévy, A Inteligência Coletiva
- Byung-Chul Han, A Sociedade do Cansaço
- José Régio, Não vou por aí
- Fernando Pessoa, Livro do Desassossego, Poemas de Álvaro de Campos, Mensagem
- Joseph Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia